– Eu não sou feia!!! — gritou Glória.
Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória perguntou-lhe:
– Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
– É para eu não me doer.
– Como é que é? Hein? Você se dói?
– Eu me dôo o tempo todo.
– Aonde?
– Dentro, não sei explicar.
Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo
passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração. Glória advertiu-a:
– Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí.
Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça.
Feliz, feliz, feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada.
Às vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até passar (parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava). Em pé pensando em nada, os olhos moles.
Nem Glória era uma amiga: só colega. Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?
Em relação a Macabéa, Glória tinha um vago senso de maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais, dizia:
– E esse ar é por causa de?
Macabéa, que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia
porque Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto. Em compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse era parecer com Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser.
E Glória caiu na gargalhada:
– Logo ela, Maca? Vê se te manca!
Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor.
Sabia que o sestro molengole de mulata, uma pintinha marcada junto da boca, só para dar uma gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. Sua boca era loura. Parecia até um bigode. Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E
Glória pensava: não tenho nada a ver com ela.
Ninguém pode entrar no coração de ninguém. Macabéa até que falava com Glória — mas nunca de peito aberto.
Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos internináveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia nela um desafio que se resumia em
“ninguém manda em mim”. Mas lá um dia pôs-se a olhar e a olhar e a olhar Macabéa. De repente não agüentou e com um sotaque levemente português disse:
– Oh mulher, não tens cara?
– Tenho sim. É porque sou achatada de nariz, sou alagoana.
– Diga-me uma coisa: você pensa no teu futuro?
A pergunta ficou por isso mesmo, pois a outra não soube responder.
Muito bem. Voltemos a Olímpico.
Ele, para impressionar Glória e cantar logo de galo, comprou pimenta-malagueta das brabas na feira dos nordestinos e para mostrar à nova namorada o durão que era mastigou em plena poupa a fruta do diabo. Nem sequer tomou um copo de água para apagar o fogo nas entranhas. O ardor quase intolerável no entanto o enrijeceu, sem contar que Glória assustada passou a obedecê-lo. Ele pensou: pois não é que sou um vencedor? E agarrou-se em Glória com a força de um zangão, ela lhe daria mel de abelhas e carnes fartas. Não se arrependeu um só instante de romper com Macabéa pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros. Ele tinha fome de ser outro. No mundo de Glória, por exemplo, ele ia se locupletar, o frágil machinho. Deixaria enfim de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo por vergonha de tal fraqueza: é que desde menino na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdôo.
Glória, querendo compensar o roubo do namorado da outra, convidou-a para tomar lanche da tarde, domingo, na sua casa.
Soprar depois de morder? (Ah que história banal, mal agüento escrevê-la.)
E lá (pequena explosão) Macabéa arregalou os olhos. É que na suja desordem de uma terceira classe de burguesia havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro em comida, no subúrbio comia-se muito. Glória morava na rua General não-sei-o-quê, muito contente de morar em rua de militar, sentia-se mais garantida. Em sua casa até telefone tinha. Foi talvez essa uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava. Isto é, um farto copo de grosso chocolate de verdade misturado com leite e muitas espécies de
roscas açucaradas, sem falar num pequeno bolo. Macabéa, enquanto Glória saía da sala — roubou escondido um biscoito. Depois pediu perdão ao Ser abstrato que dava e tirava. Sentiu-se ,perdoada. O Ser a perdoava de tudo.
No dia seguinte, segunda-feira, não sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de nervosismo de beber coisa de rico, passou mal. Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate. Dias depois, recebendo o salário, teve a audácia de pela primeira vez na vida (explosão) procurar o médico barato indicado por Glória: Ele a examinou, a examinou e de novo a examinou.
– Você faz regime para emagrecer, menina?
Macabéa não soube o que responder.