Sem discutir o mérito dessas opiniões e considerando somente o lado
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linguístico da questão, diremos que estas três aplicações do termo alma
constituem três ideias distintas que demandariam um vocábulo diferente para cada uma. Portanto, essa palavra tem um tríplice significado e cada um tem razão em seu ponto de vista na definição que lhe dá; o erro está em a língua possuir uma palavra só para três ideias. Para evitar todo equívoco, seria necessário restringir a acepção do vocábulo alma a uma daquelas ideias; a escolha é indiferente, a questão toda é se entender, é um caso de convenção. Julgamos mais lógico tomá-lo na sua acepção mais comum; por isso chamamos ALMA o ser imaterial e individual que reside em nós e que
sobrevive ao corpo. Mesmo que esse ser não existisse, e não passasse de um produto da imaginação, ainda assim seria preciso um termo para designá-lo.
Na ausência de um vocábulo especial para cada uma das outras duas ideias, nós designamos:
Princípio vital, o princípio da vida material e orgânica, qualquer que seja sua origem, e que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem. Já que a vida pode existir sem a faculdade de pensar, o princípio vital é uma coisa distinta e independente. A palavra vitalidade não daria a mesma ideia. Para uns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se encontra em certas circunstâncias; segundo outros — e esta é a ideia mais comum —, ele reside em um fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada ser absorve e assimila uma parcela durante a vida, tal como vemos os corpos inertes absorverem a luz; esse seria então o fluido vital que, na opinião de alguns, não seria outro que o fluido elétrico animalizado, assim designado pelos nomes de fluido magnético,
fluido nervoso etc.
Seja como for, há um fato que ninguém poderia contestar, pois é um resultado da observação: é que os seres orgânicos têm em si uma força íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força exista; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos e que ela é independente da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; enfim, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e de pensamento há uma dotada de um senso moral especial que lhe dá uma incontestável superioridade sobre as
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outras: está é a espécie humana.
Concebe-se que, com uma significação múltipla, a alma não exclui nem o materialismo nem o panteísmo. O próprio espiritualista pode bem entender a alma de acordo com uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo do ser imaterial distinto ao qual dará então um nome qualquer.
Assim, essa palavra não é a representante de uma única opinião: é um proteu2
que cada qual acomoda ao seu gosto; daí tantas disputas intermináveis.
A confusão seria evitada, mesmo se usássemos a palavra alma nos três casos, desde que acrescentássemos a ela um qualificativo que especificasse o ponto de vista sob o qual a consideramos, ou a aplicação que fazemos dela.
Seria então um termo genérico, representando ao mesmo tempo o princípio da vida material, da inteligência e do senso moral, e que se distinguiriam por um atributo, como os gases, por exemplo, que distinguimos acrescentando-lhes as palavras hidrogênio, oxigênio ou azoto. Assim, poderíamos dizer, e talvez fosse o melhor, a alma vital para o princípio da vida material; a alma
intelectual para o princípio da inteligência, e a alma espírita para o princípio da nossa individualidade após a morte. Como se vê, tudo isto é uma questão de palavras, mas uma questão muito importante para o entendimento. Com isso, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual seria própria dos animais e dos homens; e a alma
espírita pertenceria somente ao homem.
Julgamos necessário insistir ainda mais nestas explicações, porque a doutrina espírita fundamenta-se naturalmente sobre a existência em nós de um ser independente da matéria e sobrevivente ao corpo. Como a palavra
alma deve aparecer frequentemente no decorrer desta obra, era importante definir o significado que lhe atribuímos para evitar qualquer mal-entendido.
Vamos agora ao objeto principal desta instrução preliminar.
III
Como toda novidade, a doutrina espírita tem seus adeptos e seus 2 Alusão ao deus Proteu da mitologia grega, caracterizado pelo dom da metamorfose, pelo qual assume várias formas; representa o indivíduo que muda facilmente de opinião. — N. T.
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contraditores. Vamos tentar responder a algumas das objeções destes últimos, examinando o valor dos motivos sobre os quais eles se apoiam, todavia, sem alimentarmos a pretensão de convencer todo mundo, pois há pessoas que creem que a luz foi feita exclusivamente para elas. Vamos nos dirigir aos indivíduos de boa-fé, sem ideias preconcebidas ou mesmo intransigentes, mas sinceramente desejosos de se instruir, e nós lhes demonstraremos que a maior parte das objeções que se opõem à doutrina vem de uma observação incompleta dos fatos e de um julgamento formado com muita ligeireza e precipitação.
Lembremos primeiramente, em poucas palavras, a série progressiva dos fenômenos que deram origem a esta doutrina.
O primeiro fato observado foi o de objetos diversos postos em movimento; eles foram vulgarmente designados pela expressão mesas
girantes ou dança das mesas. Esse fenômeno, que parece ter sido observado primeiramente na América — ou melhor, que se renovou naquele país, pois a história prova que ele remonta à mais alta Antiguidade — se produziu acompanhado de circunstâncias estranhas, tais como barulhos insólitos, pancadas sem causa evidente conhecida. De lá, foi rapidamente propagado na Europa e em outras partes do mundo; ele a princípio suscitou muita incredulidade, porém a multiplicidade das experiências logo impossibilitou de se duvidar da realidade.
Se tal fenômeno tivesse se limitado ao movimento de objetos materiais, poderia ser explicado por uma causa puramente física. Estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da natureza e todas as propriedades daquilo que conhecemos; a eletricidade, por exemplo, diariamente multiplica ao infinito os recursos que ela proporciona ao homem e parece destinada a esclarecer a ciência com uma luz nova. Portanto, não havia nada de impossível em que eletricidade, modificada por certas circunstâncias, ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa desses movimentos. A reunião de várias pessoas aumentando a potencialidade da ação parecia apoiar essa teoria, pois podia-se considerar esse conjunto como uma pilha múltipla cuja potência seja proporcional ao número dos elementos.
O movimento circular não tinha nada de extraordinário: faz parte da
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natureza; todos os astros se movem circularmente; poderíamos ter então, em pequena escala, um reflexo do movimento geral do Universo, ou, melhor dizendo, uma causa até então desconhecida poderia produzir acidentalmente, com pequenos objetos e em determinadas condições, uma corrente semelhante àquela que move os mundos.
Ocorre que o movimento nem sempre era circular; muitas vezes era brusco e desordenado, sendo o objeto violentamente sacudido, derrubado, levado numa direção qualquer e, contrariamente a todas as leis da estática, levantado do chão e mantido no espaço. Ainda aqui nada havia que não pudesse ser explicado pela força de um agente físico invisível. Não vemos a eletricidade derrubar edifícios, arrancar árvores, atirar longe os mais pesados corpos, atraí-los ou repulsá-los?
Os ruídos estranhos, as batidas — supondo que não fossem um dos efeitos comuns da dilatação da madeira ou de qualquer outra causa acidental
— podiam muito bem ser produzidos pela acumulação de um fluido oculto: a eletricidade não produz ruídos dos mais violentos?
Até aí, como se vê, tudo pode estar dentro dos fatos puramente físicos e fisiológicos. Sem sair desse campo de ideias, já havia ali assunto para estudos sérios e dignos de prender a atenção dos sábios. Por que não aconteceu assim? É penoso dizê-lo, mas o fato decorre de causas que provam, entre mil fatos semelhantes, a leviandade do espírito humano. Talvez, de início, isso tem a ver com a vulgaridade do objeto principal que serviu de base às primeiras experiências. Que influência muitas vezes uma palavra teve sobre as coisas mais graves! Sem considerar que o movimento podia ser aplicado a um objeto qualquer, a ideia das mesas prevaleceu, sem dúvida porque foi o objeto mais conveniente, e porque as pessoas se sentavam muito mais naturalmente em torno de uma mesa do que em torno de qualquer outro móvel. Ora, os homens importantes às vezes são tão infantis que nada teria aí de impossível que certos espíritos de elite tivessem considerado vergonhoso se ocupar com o que se convencionara chamar a dança das mesas. É mesmo provável que se o fenômeno observado por Galvani tivesse sido por homens vulgares e ficasse caracterizado por um nome burlesco, ainda estaria relegado ao lado da varinha mágica. De fato, qual é o sábio que não teria pensado
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derrogar em se ocupar com a dança das rãs?3
Alguns sábios, entretanto, bastante modestos para admitir que a natureza poderia ainda não lhes ter dito a última palavra, quiseram ver para tranquilizar suas consciências; mas aconteceu que o fenômeno nem sempre correspondia às suas expectativas, e como não era produzido constantemente à vontade deles e segundo o seu modo de experimentação, eles concluíram pela negação; apesar da censura deles, as mesas — já que há mesas —
continuam a girar, e podemos dizer como Galileu: e no entanto elas se