meu pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, não se esquecerem, eu pegava o rifle – tive rifle de winchester, até, de quatorze tiros – e dava gala de entremez. – “Corta aquele risco Tatarana!” – me aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei.
Para rebater, reproduzia tudo a revólver. – “Vem um cismo de fio de cabelo no ar, que eu acerto.” Sobrefiz. Social eu andava com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas sempre. Ao que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.
Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive – que era o de destruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir: seu riso tem siso. Eu sei. Eu quero é que o senhor repense as minhas tolas palavras. E, olhe: tudo quanto há, é aviso. Matar a aranha em teia.
Se não, por que era que já me vinha a idéia desejável: que joliz
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas havia de ser era se meter um balaço no baixo da testa do Hermógenes?
A bronzes. O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já vai que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo dele. Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; eu queria bondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui.
Entendi o estado de jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro de primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo à traição, espreitar a gente por conta dos bebelos.
Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O
senhor vigie esses: comem o cru de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Só Candelário, que se prezava de bondoso, mandava, mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus.
– “E Deus, Diadorim?” – uma hora eu perguntei. Ele me olhou, com silenciozinho todo natural, daí disse, em resposta: – “Doca
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ramiro deu cinco contos de réis para o padre vigário de Espinosa...”
Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza.
Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas, outra vez, quando um inimigo foi pego, ele mandou: – “Guardem este.” Sei o que foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ia lá, sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou falar, ou rir, ele deixava a boca própria se abrir alta no meio, como sem vontade, boca de dor. Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele – um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas filho deve de gostar do pai. As tantas coisas me tonteavam: eu em claro. De repente, eu via que estava desejando que Zé Bebelo vencesse, porque era ele quem estava com a razão. Zé Bebelo devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rãs, com o inferno da jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, por fora, com todo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo do meu coração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numa árvore. Aí eu não queria ficar doido, no nem mesmo. Puxei conversa com Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido, de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me escutou depressa, tal duvidou de meu juízo: – “Riobaldo, onde é que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro, mas leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne é com quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens bem-comportados bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé Bebelo e aos cachorros do Governo?!” A espichado, nesse dia calei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição.
Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas de tristeza.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom.
Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber, constante comer. – “Comeu, lobo?”E vozear tantas asneiras, mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, um disse:
– “Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados pesares...” Desentendi, mediante meu querer. Mas não me adiantou. Dai, persistentemente, essa história me remoía, esse nome de um Leopoldo; Tomava por ofensa a mim, que Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo companheiro. Até que, vai, cresci naquela idéia: que o que estava fazendo falta era uma mulher.
E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. – “Saindo por aí”, – dizia um – “qualquer uma que seja, não me escapole!” Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. – “Mulher é gente tão infeliz...” – me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando estavam precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam. Deus me livrou de endurecer nesses costumes perpétuos. A primeira, que foi, bonita moça, eu estava com ela
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas somente. Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça – fechados os olhos –
não bulia; não fosse o coração dela rebater no meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto, de repente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres, constituído milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levava essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova, foi uma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou fria estendida, para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eu nos medonhos fosse – e, o senhor crê? – a mocinha me agüentava era num rezar, tempos além. Às almas fugi de lá, larguei com ela o dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma minha recompensa. O que eu queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu ser. Feito com a Rosa ‘uarda, sempre formosa, a filha de Assis Wababa, sonhos meus, turcamente; e que a qual, não lhe disse: o pai dela, que era forte negociante, em todo tempo nanja que não desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Fonfredo – que cantava todas as rezas de padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfredo, desse já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito “o Caridoso”, queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catocho, mulato claro – era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minas-novense, com mania de aforrar dinheiro. O Diolo, preto de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para que que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo...
Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é demônio de ruim, ele ria de não querer ser, capaz até de nessa raiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas no rabo da palavra. Ezirino matou um companheiro, que Batatinha se chamava, o pobre dum cafuz magrelo, só que tinha o danado defeito de contrariar qualquer coisa que a gente falava.
Ezirino caiu no mundo. Daí, começou voz que ele tinha fugido para se bandear com os zé-bebelos, pago por sua traição, e que Batatinha somente morreu porque disso sabia. Todo o mundo andava encrespo, forjicavam muita cilada e enredos de desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais a coberto, em distância: obra de sete léguas, para a parte do poente. Muito vi que não estávamos fazendo isso por escapulir; mas que o Hermógenes, Titão Passos e João Goanhá, antes acharam de combinar aquilo, em suas conversas – era o arrumo para melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, lá chegaram, com satisfação de todos, dez homens, a Só Candelário pertencidos.
Traziam cargueiros com mais sal, bom café e uma barrica de bacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o Luzié, alagoano de Alagoas. Nesse dia, eu saí, com esquadra, fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos, andamos mais de três léguas e tanto, no meio da noite retornamos.
De manhã cedo, eu soube: tinham até dançado, aquela véspera. – “Diadorim, você dança?” – logo, perguntei. –
“Dança? Aquilo é pé de salão...” – quem respondeu foi o
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Garanço, o de olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrou um enjôo. O Garanço, era um mocorongo mermado, com estúrdias feições, e pessoa muito agradável de seu natural. Ele tinha idéias, às vezes parecia criança pequena. Punha nome em suas armas: o facão era torturum, o revólver rouxinol, a clavina era berra-bode.
Com ele, a gente ria, sempremente. Mais o Garanço dava de procurar a companhia nossa, minha e de Diadorim; aquele tempo ele vinha costumeiro para perto. Às vezes, como naquilo, ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não dizia nada, estava deitado de costas, num pelego, com a cabeça num feixe de capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia – Diadorim menos gostava de rede. O Garanço era sanfranciscano, dum lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente escutasse ele recontar compridas passagens de sua vida. Aquilo aborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos violeiros, que tocavam sentimento geral. Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele, guapo tão aposto – surgido sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre. De repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo dito pelego, na cama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara posta no próprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com o violeiro
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não presenciava nada, nem escutava possuído – fiquei sonhejando: o ir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório? A bem, no São Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do poço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens. O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. As vezes não é fácil. Fé que não é.