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As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Se coça a canela com o calcanhar; – estando com polaina não adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta.

Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar – dão muito aviso. Aí quando é tempo de vaga-lume, esses são mil demais, sobre toda a parte: a gente mal chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra – é o pior aviso.

O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna. Às guardas, qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigo vindo dele.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme com gosto – que é o que mais defende d’ele não se cravar. O inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro de terra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a cara. E uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu figurava que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhas costas.

Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da noite, lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavel, numa certa morte dessas. Pior é a surucucu, que passeia longe, noturnazã, monstro: essa é o que há com mais doida ligeireza neste mundo.

Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, da macega, das folhas, – é o que digo ao senhor; me desgostava.

Raio de um repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um tatu, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o esfrego de suas muxibas. Tatu-peba, e eu no rés dele. Que modo quê? Rastejando de minha banda da direita, o Hermógenes rompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultar deitado de bicho duro, braço por braço. O Garanço e o Montesclarense espigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando de sem-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo – me cochichou de mão em concha. – “É aqui mesmo...” – ele redisse.

Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios pássaros da noite? – pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro dum araçá-branco formava bolas. Quietei.

Até que o dia deu, que é que foi do meu tempo, que horas que se passaram? Aí eu podia medir, pelas estrelas que vão em movimento, descendo no rumo de seu poente, elas viravam. Mas, digo ao senhor, eu não olhei para o céu. Não queria. Não podia.

Assim espichado, no escabro, um sofre o festo da noite, o chão esfriava. Pensei: será se eu fosse adoecer?; um longe de dor-de-dente já me indispondo. Aquilo que cochilei – dormir, eu em firme rejeitava. O Hermógenes, um homem existente encostado no senhor, calado curto, o pensamento dele assanha – feito um berreiro. Aquelas mortes, que eram para daí a pouco, já estavam na cabeça do Hermógenes. Eu não tinha nada com aquilo, próprio, eu não estava só obedecendo? Pois, não era? Ao que, o meu primeiro fogo tocaieiro. Danado desuso disso é o antes –

tanto antes, ror. O senhor acha que é natural? Osgas, que a gente tem de enxotar da idéia: eu parava ali para matar os outros – e não era pecado? Não era, não era, eu resumi: – Osgas... Cochilei, tenho; Por descuido de querer. Dormi, mesmo? Eu não era o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas chefe. loca Ramiro queria aquilo? E o Hermógenes, mandante perto, em sua capatazia. Dito por uns: no céu, coisa como uma careta preta? É erro. Não, nada, oi. Nada.

Eu ia matar gente humana. Dali a pouco, o madrugar clareava, eu tinha de ver o dia vindo. Como era o Hermógenes?

Como vou dizer ao senhor..? Bem, em bró de fantasia: ele grosso misturado – dum cavalo e duma jibóia... Ou um cachorro grande. Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse.

Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo, povo reunido na beira do Jequitaí, por ganhar seu dinheirinho fiel, feito tropa de soldo.

Quantos não iam morrer por minha mão? Andante que perpassou um vento, entre ele o crico de grilos e tantos bichinhos divagados. Assaz, a noite, com sombras vermelhas. O

exemplar da morte, dessa, é que é num átimo, tão ligeira, tão direitinha. As coisas que eu nem queria pensar, mas pensava mais, elas vinham. Vezo de falar do Geraldo Pedro, que disse: –

“Aquele? Hoje ele não existe mais, virou sombração... Matei...”

E o Catocho, contando doutro: – “... Lá tem uns órfãos meus, lá

... Tive de matar o pai deles...” Por que era que falavam essas perversidades... Por que é que falavam... Por que era que eu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em tempo: se eu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele um breve tiro, bem certo, e corria, ladeira abaixo, às voltas, caçava de meu sumir nesse vai-te-mundo. Ah, nada: então, aí mesmo era que o fogo feio começava, por todas as partes, de todo jeito morresse muita gente, primeiro de todos morria eu. Mesmo estava sem remédio. O Hermógenes mandava em mim. Que que quer, ele era mais forte! Pensei em Diadorim. O que eu tinha de querer era que nós dois saissemos sobrados com vida, desses todos combates, acabasse a guerra, nós dois largávamos a jagunçada, íamos embora, para os altos Gerais tão ditos, viver em grande persistência. Agora, aqueles outros, os contrários, não estavam também com poder de me matar? À asneira. E eu ia, numa madrugadinha, a cavalo, por uma estrada de areia branca, no Buriti-do-Á, beira de vereda, emparelhado com um capiauzinho bondoso, companheiro qualquer, a gente ria, conversava de tantas miúdas coisas, sem maldade, se pitava, eu ia levando meio saco de milho na garupa, ia para um moinho, para uma fazenda, para berganhar o milho por fubá... – sonhos que pensava. À fé: aqueles zebebelos também não tinham varado o Norte para destruir gente? E pois?! O que tivesse de ser, somente sendo. Não era nem o Hermógenes, era um estado de lei, nem dele não era,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas eu cumpria, todos cumpriam. “Vou para os Gerais! Vou para os Gerais!” – eu dizia, me dizia. Numa minha perna, então torci o de dar cãibra. Depois, tirei a dureza dos dedos. A ver, Diadorim, a gente ia indo, nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dez metros de chão de flor. Por que que eu ia ter pena dos outros? Algum tinha pena de mim...? Cabeça de homem é fraca, repensava. O

que se carecia justo de fazer era acabar logo com a guerra, acabar com aqueles zebebelos. Pensar em Diadorim, era o que me dava cordura de paz. Ah, digo ao senhor: dessa noite não me esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim. Matar, matar, que que me importava? Dessa noite esquecer não posso. Garoou, para a aurora.

Como clareia: é aos golpes, no céu, a escuridão puxada aos movimentos. A gente estava de costas para as barras do dia. Me lembro do que me lembro: o Hermógenes cruzou, adiante, chato no chão, relando barriga em macio. Aquele homem era danado de tigre, estava cochichando na cabeça do Garanço, depois com o Montesclarense – mostrava a eles os lugares em que deviam-de. Arre, voltou para perto de mim, agora veio da outra banda. Disse: – “Tento, Riobaldo...” Eu vi quando o Garanço rojou, indo, indo, pegou postura na proteção dum cupim grande; obra de cinco metros para a minha frente,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pouquinho para esta banda da esquerda. No não longe, rumo a rumo, divulguei o Montesclarense. Eu ainda mudei distância de uns passos: aproveitei tapação duma árvore de boa grossura –

um araçáde-pomba, fechado. De sovigia, o Hermógenes não me largava. Doesse na gente, mesmo aquele principiozinho de madrugada. Apertava a necessidade. Por que não se avançava de uma vez, para tudo, vir às brabas? Ah, não se podia. Só logo no primeiro entremear com os bebelos, nós quatro havíamos de restar mortos, cosidos nas parnaíbas. E, dos companheiros, outros, não se sabia. Sendo somente que o acampamento dos bebelos devia de estar a uma hora dessas cercado exato, em boa distância, à roda toda. Tudo era paciência. Vinha um ventozinho, folheando. Tantos homens amoitados, que só espiavam: na obrigação – refleti. Até achei bonito, agora. Aí passarinhos que já vão voando, com o menorzinho ralo de luz eles se contentam, para seu só isso de caçar o de comer. Triste, triste, um tiriri cantou. Alegre, para mim, a peitica. Olhei adiante, curto, lá era que eles estavam: por entre umas árvores pequenas, dava réstia de claridade, e um formato de homem, contravisto. Ele ia acender fogo. E apareceram vultos de outros, levantantes. Com pouco, alguns podiam vir descendo, buscar mais água no corguinho, se carecessem. Asneiras que pensei:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas será que eles gastaram muita água? Será que um esmorece, por medo ter? Eu não campeava a morte. Seguro nasci, sou feito.

D’o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, gostei. – “Riobaldo, Tatarana! É o é...” – ele me governou, de repente. Aceitei. Desamarrei mão, de vez pronta: eu já tinha resumido pontaria: eu tive consolo duma coisa, que era que aquele homem alto não podia ser Zé Bebelo... Não tremi, e escutei meu tiro, e o do Hermógenes; e o homem alto caiu certo morto, rolou na má poeira. Me deu uma raiva, dele, deles todos.

E em toda a parte, a sobre, o tiroteio tinha começado.

Estrondou. Falavam os rifles e outros: manlixa, granadeira e comblém. Festa de guerra.

Mais digo ao senhor? Atirei, minhas vezes. Aí, tomei ar. O

senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a gente esbarra e espera: espera o que vão responder. A gente quer porções.

Demais é que se está: muito no meio de nada. A morte? A coisa que o que era xô e bala. Que qual, agora não se podia mais ter outros lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e o ar se estragou, trançado de assovios de ferro metal. O senhor ali não tem mãe, não vê que a vida é só brabeza. Revém ramo cortado de árvore, aí e o comum que cavacam poeiras e terras. Digo ao

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor, dou conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o rifle, escorei, repetente. Aquele povo inimigo nosso esperdiçava muita munição, atiravam com nervosia. Não queriam morrer por nossa mão, não queriam. Ri me ri, e o Hermógenes me chamou com assombro. Em isso ele me crendo endoidado. Mas eu estava era de repente pensando em meu padrinho Selorico Mendes.

“Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não quer?!” – foi o que arranjei vontade de gritar com o Hermógenes. Cão, que ele. Ri mais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pior atirava. E

aqueles bebelos tinham feito madrugada para levar fogo. Fiquei meu. “... Se todos passam mão em arma e fecham volta de tiroteio, uns contra os outros, então o mundo se acaba...” – acho que pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente marinhavam. Os tiros peguei a querer contar. Aquilo como durou, demorava um oco. O dia tinha clareado saído: eu todo podendo descrever o Montesclarense, atrás dum toro de pau e moitas de anduzinho. Para que conto isto ao senhor? Vou longe.

Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São coisas que não cabem em fazer idéia.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Combate quanto, combate grande. Ser menos, que a gente não rastejava alterando de lugar, que não era o caso. Quase que só quando se pega no defendimento é que isso é de se fazer: para pensarem que se vai em número maior que a verdade. Como não, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar. Tiro de lá chama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava, era catando mover alheio, cujo descuido, como malandro malandreia. Nem cento – e-cinqüenta braças era o eito, jaculação minha. Aquilo servia até para carga de bocamorte. E mais de um, eu etcétera, aí, pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles que para morrer estavam com dia marcado. Minto? O senhor releve idéias. Era assim.

Deu vez de, os muitos tiros se assanhavam, de prão, em riba dum trecho só. Queriam costurar. Aí, e as horas não acabavam. O sol encostava na nuca da gente. Sol, solão, debaixo eu suava, transpirava dos cabelos, e pelo dentro das roupas, de sentir as cócegas grossas no meio do lombo; e essas dormências numas partes do corpo. Então, eu atirava. Não se ia avançar?

Não, nem. Os outros picavam forte, o fogo deles não desmerecia. Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir só para mostrar mais alvo. Ao que, eu descansava meus olhos nas costas do Garanço, ali quase em minha frente. O Garanço tinha

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