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Digo: bons e maus, uns pelos outros, como neste mundo se pertence. Por um que ruim seja, logo mais para adiante se encontra outro pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo com isso, a peito pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta gravidade. Se vivia numa jóvia, medindo mãos, em vavavá e conversa de festa, tomando tempo. Aqueles não desamotinavam. A ajunta, ali, assim, de tantos atrás do ar, na va-gagem: manga de homens, por zanzar ou estar à-toa ou parar formando rodas; ou uns dormindo, como boi malha; ou deitados no chão sem dormir – só aboboravam. Assaz toda espécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta larga de lã vermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto de fino pano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo sem chuva nenhuma; só que de branco vestido não se tinha: que com terno claro não se guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nu-de-Deus

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ou indecente descomposto, no meio dos outros, isso não e não.

Andando que sentados, jogando jogos, ferrando queda de braço, assoando o nariz, mascando fumo forte e cuspindo longe, e pitando, picando ou dedilhando fumo no covo da mão, com muita demora; o mais, sempre no proseio. Aventes baldrocavam suas pequenas coisas, trem objeto que um tivesse e menos quisesse, que custou barato. E ninguém furtava! Furtasse, era perigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sem bois. Ou cuidavam do espírito da barriga. O serviço que cumpriam era alimpar as armas bem – marcadas as cruzes nas feições das coronhas. E tudo o mais que faziam, que fosse coisa de sem-oque-fazer. Por isso – se dizia – que ali corresse muita besouragem, de falação mal, de rapa-tachos. Tinham lá até cachorros, vadiando geral, mas o dono de cada um se sabia; convinha não judiar com cão, por conta do dono.

Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que fossem mesmo de constância assim, por tempero de propensão; ou, então, por me arrediarem, porquanto me achando deles diverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eu soube que eu era mesmo de outras extrações. Semelhante por este exemplo, como logo entendi: eles queriam completo ser jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o que avistei,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas seguinte. Pois não era que, num canto, estavam uns, permanecidos todos se ocupando num manejo caprichoso, e isto que eles executavam: que estavam desbastando os dentes deles mesmos, aperfeiçoando os dentes em pontas! Se me entende? Senhor ver, essa atarefação, o tratear, dava alojo e apresso, dava até aflição em – aflito, abobante. Os que lavravam desse jeito: o Jesualdo – mocinho novo, com sua simpatia –, o Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles eram o Simião e o Acauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes de diante, a poder de gume de ferramenta, por amor de remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco – piranha redoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense que para esse gasto tinham instrumentos próprios, alguma liminha, ou ferro lixador. Não: aí era à faca. O Jesualdo mesmo se fazia, fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de encalcar o corte da faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia no cabo da faca, com uma pedra, medidas pancadas. Sem espelho, sem ver; ao tanto, que era uma faca de cabo de niquelado. Ah, no abre-boca, comum que babando, às vezes sangue babava. Ao mais gemesse, repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito doía. Agüentava.

Assim esquentasse demais; para refrescar, então ele bochechava a breve, com um caneco de água com pinga. Os outros dois, também. O Araruta procedia sozinho, igual, batendo na faca

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com a prancha de outra. O Nestor, não: para ele, o Simião, com um martelinho para os golpes, era quem raspava; mas decerto o Nestor ao outro para isso algum tanto pagasse. Abrenunciei. –

“Arrenego!” – eu disse. – “Deveras? Então, mano-velho, pois tu não quer?” – o Simão, em gracejo, me perguntou. Me fez careta; e – acredite o senhor: ele, que exercia lâmina nos do outro, ele não possuía, próprio, dente mais nenhum nas gengivas –

conforme aquela vermelha boca banguela toda abriu e me mostrou. Repontei: – “Eu acho que, para se ser valente, não carece de figurativos...” O Acauã, que já era bom conhecido meu, assim mesmo achou de se reagir: – “São gostos...” Mas, um outro, que chegando veio, falou o mais seco: – “Tudo na vida são gostos, companheiro. Mas não será o meu!” Olhei para esse, que me deu o apoio. E era um Luís Pajeú – com a faca-punhal do mesmo nome, e ele sendo de sertão do mesmo nome, das comarcas de Pernambuco. Sujeito despachado, moreno bem queimado, mas de anelados cabelos, e com uma coragem terrivelmente. Ah, mas o que faltava, lá nele, que ele mais não tinha, era uma orelha, – que rente cortada fora, pelo sinal. Onde era que o Luís Pajeú havia de ter deixado aquela orelha? – “Será gosto meu não, de descasear dentaduras...” – conciso declarou, falava meio cantado, mole, fino. Alto e forte, foi outro falar, de outro, que no instante também ouvi: – “Uê, em minha terra, se

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas afia guampa, é touro, ixi!” E esse um, trolado demais franco, e desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz conhecença. Dele tenho, para mais depois.

Ao que lá não faltava a farta comida, pelo que logo vi.

Gêneros e bebidas boas. De donde vinha tudo, em redondezas tão pobrezinhas, a gente parando assim quase num deserto? E a munição, tanta, que nem precisaram da que tínhamos trazido, e que foi levada mais adiante, para os escondidos de Joca Ramiro, perto do arraial do Bró? E a jorna, para satisfazer àquela cabroeira vivente, que estavam ali em seu emprego de cargo? Ah, tinham roubado, saqueado muito, grassavam. A sebaça era a lavoura deles, falavam até em atacar grandes cidades. Foi ou não foi?

Mas, mire e veja o senhor: nas eras de 96, quando os serranos cismaram e avançaram, tomaram conta de São Francisco, sem prazo nem pena. Mas, nestes derradeiros anos, quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá, quase com homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de São Francisco soube, se reuniram, e deram fogo de defesa: diz-que durou combate por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na boca das ruas – com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores cortadas, de través – brigaram como boa população! Daí, aqueles

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda, conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns soldados, cercados numas duas ou três casas e um quintal, guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque antes o Major Amaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele.

Andalécio – o que, de nome real: Indalécio Gomes Pereira-homem de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava sempre com tremores: de quando, no tiroteio de inteira noite, Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz: – “Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!...” Tudo gelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socorro, para salvar o Major, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo às pressas de Januária, com punhadão de outros jagunços, de fazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram, mandaram desenterrar, para contar bem, mais de sessenta mortos, uns quatorze juntos numa cova só! Essas coisas já não aconteceram mais no meu tempo, pois por aí eu já estava retirado para ser criador, e lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi ainda atual agora, recentemente, quase, isto é; foi logo de se emendar depois do barulhão em Carinhanha – mortandades: quando se espirrou sangue por toda banda, o senhor sabe:

“Carinhanha é bonitinha...” – uma verdade que barranqueiro canta, remador. Carinhanha é que sempre foi de um homem de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem.

Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita, tinha uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupo calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão.

Acaba?

Atinei mal, no começo, com quem era que mandava em nós todos. O Hermógenes. Mas, perto duns cinqüenta – nesse meio o Acauã, Simão, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa –

obedeciam a João Goanhá, eram dele. E tinha um grupo de brabos do Ricardão. Onde era que estava o Ricardão? Reunindo mais braços-de-armas, beira da Bahia. Se esperava também a vinda de Só Candelário, com os seus. Se esperava o chefe grande, acima de todos – Joca Ramiro – falado aquela hora em Palmas. Mas eu achava aquilo tudo dando confuso. Titão Passos, cabo-de-turma com poucos homens à mão, era nãostante muito respeitado. E o sistema diversiava demais do regime com Zé Bebelo. Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim

– sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semelho, mal comparando, com o governo de bando

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de bichos – caititu, boi, boiada, exemplo. E, de coisas, faziam todo segredo. Um dia, foi ordem: ajuntar todos os animais, de sela e de carga, iam ser levados para amoitamento e pasto, entre serras, no Ribeirão Poço Triste, num varjal. Para mim, até o endereço que diziam, do lugar, devia de ser mentira. Mas tive de entregar meu cavalo, completo no contragosto. Me senti, a pé, como sem segurança nenhuma. E tem as pequenas coisas que aperreiam: enquanto estava com meu animal, eu tinha a capoteira, a bolsa da sela, os alforjes; podia guardar meus trecos.

De noite, dependurava a sela num galho de árvore, botava por debaixo dela o dobro com as roupas, dormia ali perto, em paz.

Agora, eu ficava num descômodo. Carregar os trens não podia –

chegava o peso das armas, e das balas e cartuchame. Perguntei a um, onde era que tudo se depositava. – “Eh, bereu... Bota em algum lugar... Joga fora... Oxe, tu carrega ouro nesses dobros?...”

Quê que se importavam? Por tudo, eram fogueiras de se cozinhar, fumaça de alecrim, panela em gancho de mariquita, e cheiro bom de carne no espeto, torrada se assando, e batatas e mandiocas, sempre quentes no soborralho. A farinha e rapadura: quantidades. As mantas de carne-ceará. Ao tanto que a carne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíam alguns e retornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos misturavam a jacuba pingando no coité um dedo de aguardente, eu nunca

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tinha avistado ninguém provar jacuba assim feita. Os usares! A ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão, ajuntava ali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedação de carne escorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a ponta do facão, só pelo chiar. Disso, definitivo não gostei. A saudade minha maior era de uma comidinha guisada: um frango com quiabo e abóbora-d’água e caldo, um refogado de caruru com ofa de angu. Senti padecida falta do São Gregório – bem que a minha vidinha lá era mestra. Diadorim notou meus males. Me disse consolo: – “Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, estamos acuados em buraco...” Assistir com Diadorim, e ouvir uma palavrinha dele, me abastava aninhado.

Mas, mesmo, achei que ali convinhável não era se ficar muito tempo juntos, apartados dos outros. Cismei que maldavam, desconfiassem de ser feio pegadio. Aquele povo estava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era falado a todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi quando estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era de pessoal dos gerais – gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias. Mas, por fim, um se acostuma; isto é, eu me acostumei. Sem receio de ser tirado de meu dinheiro: que eu empacotava ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempre me pagou

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quis que soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver: –

“Tatarana, põe o dez no onze...” – me pediam, por festar. De duzentas braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num aquele alvo só – as todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com que me aperreavam, os coscuvilhos. – “Se alguém falou mal de mim, não me importo. Mas não quero que me venham me contar! Quem vier contar, e der notícias, é esse mesmo que não presta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!...” – eu informei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer –

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