eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricuri retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer.
Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito.
Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Titão Passos regulou um espanto: uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem disse, risonho bobeento: – “Bom? Um messias!...” O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era sempre tranqüilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão governandor, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal.
Talvez também seja. Anta entra n’água, se rupeia. Mas, não. Era não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava criticando, era me a mim contando logro – jigajogas.
– “Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo...”
– o Reinaldo veio dizendo. – “Vai ver que ele é o homem que existe mais valente!” Me olhou, com aqueles olhos quando doces.
E perfez: – “Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!” Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser. Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao compadre meu Quelemém. – “Do que o valor dessas palavras tem dentro”
– ele me respondeu – “não pode haver verdade maior...”
Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar meu pejo de tribulação.
Fim do bom logo vem, mas. O Acrísio retornou: pasmaceira na barra do rio, a nenhuma novidade. Retornou o Jenolim: o Jequitaí estava passável. E saímos simples com a tropa, sem menos dessossego nem mais receio, serra para cima, pelos caminhos tencionados. Daí, hora grave me veio, com três
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas léguas de marcha. Mazelas de mais pesares. E donde menos temi, no pior me vi. Titão Passos começou a me perguntar.
Titão Passos era homem liso bom; me fazia as perguntas com natureza tão honrosa, que eu não tinha ânimo de mentir, nem de me caber calado. Nem podia. De lá mais adiante, atravessando o Jequitaí, tudo ia se abrir a ser para nós todos campo de fogo e aos perigos de mortes. As turmas de cavaleiros de Zé Bebelo campeavam naquele país, caçando gente, sopitan-do, vigiando. Do povo morador, não faltava quem, desconfiando de nós, mandasse a eles envio de denúncia, pois todos queriam aproveitar a ocasião para se acabar com os jagunços, para sempre. – “Morrer, morrer, a gente sem luxo se cede...” – o Reinaldo disse. – “... Mas a munição tem de chegar em poder de loca Ramiro!” Eu podia pensar tranqüilo na minha morte por ali?
Podia pensar no Reinaldo morrendo? E o que Titão Passos queria saber era tudo que eu soubesse, a respeito de Zé Bebelo, das malasartes que ele usava em guerra, de seus aprovados costumes, suas forças e armamentos. Tudo o que eu falasse, podia ajudar. O saber de uns, a morte de outros. Para melhor pensar, fui mal-respondendo, me calando, falando o que era vasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o que eu mesmo quisesse.
Mas, traição, não.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Não. Nem era por retente de dever, por lei honesta nenhuma, ou floreado de noção. Mas eu não podia. Tudo dentro de mim não podia. Dou vendido em pecas riquezas o que eu cansei naquela hora, minhas caras deviam de estar pegando fogo. Que se eu contasse, não contasse, essas ânsias.
Eu não podia, como um bicho não pode deixar de comer a avistada comida, como uma bicha-fêmea não pode fugir deixando suas criazinhas em frente da morte. Eu devia? Não devia? Vi vago o adiante da noite, com sombras mais apresentadas. Eu, quem é que eu era? De que lado eu era? Zé Bebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria querer contar.
Falei e refalei inútil, consoante; e quer ver que Titão Passos aceitava aquilo assim? Me acreditava. Lembrei que ainda tinha, guardada estreito comigo, aquela lista, de nomes e coisas, de Zé Bebelo, num caderno. Alguma valia aquilo tinha? Não sei, sabia não. Andando, peguei, oculto, rasguei em pedacinhos, taquei tudo no arrojo dum riacho. Aquelas águas me lavavam. E, de tudo que a respeito do resto eu sabia, cacei em mim um esforço de me completo me esquecer. Depois, Titão Passos disse: –
“Você pode ser de muita ajuda. Se a gente topar com a
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas zebelância, você entra de bico – fala que é um deles, que esta tropa você está levando...” Com isso, me conformei. Aos poucos, mesmo compunha uma alegria, de ser capaz de auxiliar e pôr efeito, como o justo companheiro. A que, no bando de loca Ramiro, eu havia de prestar toda a minha diligência e coragem. E
nem fazia mal que eu não relatasse a respeito de Zé Bebelo mais, porquanto o prejuízo que disso se tivesse, por ele eu também padecia e pagava. No caso, em vista de que agora eu estava também sendo um ramiro, fazia parte. De pensar isso, eu desfrutei um orgulho de alegria de glória. Mas ela durou curta.
Oi, barros de água do Jequitaí, que passaram diante de minha fraqueza.
Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: – “Tudo temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia de que você fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar imediato, por culpas de desertor...” Ouvi retardado, não pude dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia me levando sem data. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas principia com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo.
Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas – que de repente podia cursar por ali gente zebebela armada, me pegavam: por al, por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, sem salves, atirado para morrer com o chão na mão. Devia de me lembrar de outros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódios daqueles homens querentes de ver sangues e carnes, das maldades deles capazes, demorando vingança com toda judiação. Não pude, não pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um vapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto.
E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo: grande vão eu atravessava.
A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais de mim, de minha companhia. Por quê? Nunca falo queixa, de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: –
“Riobaldo, puxa as orelhas do teu jumento...” Mas amuado eu
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não estava. Respondi somente: – “Amigo...” – e não disse nem mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha de ouro. E
conheci o que é socorro.