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“Arrenego!” – eu disse. – “Deveras? Então, mano-velho, pois tu não quer?” – o Simão, em gracejo, me perguntou. Me fez careta; e – acredite o senhor: ele, que exercia lâmina nos do outro, ele não possuía, próprio, dente mais nenhum nas gengivas –

conforme aquela vermelha boca banguela toda abriu e me mostrou. Repontei: – “Eu acho que, para se ser valente, não carece de figurativos...” O Acauã, que já era bom conhecido meu, assim mesmo achou de se reagir: – “São gostos...” Mas, um outro, que chegando veio, falou o mais seco: – “Tudo na vida são gostos, companheiro. Mas não será o meu!” Olhei para esse, que me deu o apoio. E era um Luís Pajeú – com a faca-punhal do mesmo nome, e ele sendo de sertão do mesmo nome, das comarcas de Pernambuco. Sujeito despachado, moreno bem queimado, mas de anelados cabelos, e com uma coragem terrivelmente. Ah, mas o que faltava, lá nele, que ele mais não tinha, era uma orelha, – que rente cortada fora, pelo sinal. Onde era que o Luís Pajeú havia de ter deixado aquela orelha? – “Será gosto meu não, de descasear dentaduras...” – conciso declarou, falava meio cantado, mole, fino. Alto e forte, foi outro falar, de outro, que no instante também ouvi: – “Uê, em minha terra, se

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas afia guampa, é touro, ixi!” E esse um, trolado demais franco, e desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz conhecença. Dele tenho, para mais depois.

Ao que lá não faltava a farta comida, pelo que logo vi.

Gêneros e bebidas boas. De donde vinha tudo, em redondezas tão pobrezinhas, a gente parando assim quase num deserto? E a munição, tanta, que nem precisaram da que tínhamos trazido, e que foi levada mais adiante, para os escondidos de Joca Ramiro, perto do arraial do Bró? E a jorna, para satisfazer àquela cabroeira vivente, que estavam ali em seu emprego de cargo? Ah, tinham roubado, saqueado muito, grassavam. A sebaça era a lavoura deles, falavam até em atacar grandes cidades. Foi ou não foi?

Mas, mire e veja o senhor: nas eras de 96, quando os serranos cismaram e avançaram, tomaram conta de São Francisco, sem prazo nem pena. Mas, nestes derradeiros anos, quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá, quase com homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de São Francisco soube, se reuniram, e deram fogo de defesa: diz-que durou combate por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na boca das ruas – com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores cortadas, de través – brigaram como boa população! Daí, aqueles

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda, conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns soldados, cercados numas duas ou três casas e um quintal, guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque antes o Major Amaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele.

Andalécio – o que, de nome real: Indalécio Gomes Pereira-homem de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava sempre com tremores: de quando, no tiroteio de inteira noite, Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz: – “Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!...” Tudo gelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socorro, para salvar o Major, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo às pressas de Januária, com punhadão de outros jagunços, de fazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram, mandaram desenterrar, para contar bem, mais de sessenta mortos, uns quatorze juntos numa cova só! Essas coisas já não aconteceram mais no meu tempo, pois por aí eu já estava retirado para ser criador, e lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi ainda atual agora, recentemente, quase, isto é; foi logo de se emendar depois do barulhão em Carinhanha – mortandades: quando se espirrou sangue por toda banda, o senhor sabe:

“Carinhanha é bonitinha...” – uma verdade que barranqueiro canta, remador. Carinhanha é que sempre foi de um homem de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem.

Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita, tinha uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupo calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão.

Acaba?

Atinei mal, no começo, com quem era que mandava em nós todos. O Hermógenes. Mas, perto duns cinqüenta – nesse meio o Acauã, Simão, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa –

obedeciam a João Goanhá, eram dele. E tinha um grupo de brabos do Ricardão. Onde era que estava o Ricardão? Reunindo mais braços-de-armas, beira da Bahia. Se esperava também a vinda de Só Candelário, com os seus. Se esperava o chefe grande, acima de todos – Joca Ramiro – falado aquela hora em Palmas. Mas eu achava aquilo tudo dando confuso. Titão Passos, cabo-de-turma com poucos homens à mão, era nãostante muito respeitado. E o sistema diversiava demais do regime com Zé Bebelo. Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim

– sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semelho, mal comparando, com o governo de bando

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de bichos – caititu, boi, boiada, exemplo. E, de coisas, faziam todo segredo. Um dia, foi ordem: ajuntar todos os animais, de sela e de carga, iam ser levados para amoitamento e pasto, entre serras, no Ribeirão Poço Triste, num varjal. Para mim, até o endereço que diziam, do lugar, devia de ser mentira. Mas tive de entregar meu cavalo, completo no contragosto. Me senti, a pé, como sem segurança nenhuma. E tem as pequenas coisas que aperreiam: enquanto estava com meu animal, eu tinha a capoteira, a bolsa da sela, os alforjes; podia guardar meus trecos.

De noite, dependurava a sela num galho de árvore, botava por debaixo dela o dobro com as roupas, dormia ali perto, em paz.

Agora, eu ficava num descômodo. Carregar os trens não podia –

chegava o peso das armas, e das balas e cartuchame. Perguntei a um, onde era que tudo se depositava. – “Eh, bereu... Bota em algum lugar... Joga fora... Oxe, tu carrega ouro nesses dobros?...”

Quê que se importavam? Por tudo, eram fogueiras de se cozinhar, fumaça de alecrim, panela em gancho de mariquita, e cheiro bom de carne no espeto, torrada se assando, e batatas e mandiocas, sempre quentes no soborralho. A farinha e rapadura: quantidades. As mantas de carne-ceará. Ao tanto que a carne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíam alguns e retornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos misturavam a jacuba pingando no coité um dedo de aguardente, eu nunca

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tinha avistado ninguém provar jacuba assim feita. Os usares! A ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão, ajuntava ali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedação de carne escorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a ponta do facão, só pelo chiar. Disso, definitivo não gostei. A saudade minha maior era de uma comidinha guisada: um frango com quiabo e abóbora-d’água e caldo, um refogado de caruru com ofa de angu. Senti padecida falta do São Gregório – bem que a minha vidinha lá era mestra. Diadorim notou meus males. Me disse consolo: – “Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, estamos acuados em buraco...” Assistir com Diadorim, e ouvir uma palavrinha dele, me abastava aninhado.

Mas, mesmo, achei que ali convinhável não era se ficar muito tempo juntos, apartados dos outros. Cismei que maldavam, desconfiassem de ser feio pegadio. Aquele povo estava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era falado a todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi quando estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era de pessoal dos gerais – gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias. Mas, por fim, um se acostuma; isto é, eu me acostumei. Sem receio de ser tirado de meu dinheiro: que eu empacotava ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempre me pagou

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quis que soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver: –

“Tatarana, põe o dez no onze...” – me pediam, por festar. De duzentas braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num aquele alvo só – as todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com que me aperreavam, os coscuvilhos. – “Se alguém falou mal de mim, não me importo. Mas não quero que me venham me contar! Quem vier contar, e der notícias, é esse mesmo que não presta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!...” – eu informei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer –

meu pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, não se esquecerem, eu pegava o rifle – tive rifle de winchester, até, de quatorze tiros – e dava gala de entremez. – “Corta aquele risco Tatarana!” – me aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei.

Para rebater, reproduzia tudo a revólver. – “Vem um cismo de fio de cabelo no ar, que eu acerto.” Sobrefiz. Social eu andava com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas sempre. Ao que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.

Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive – que era o de destruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir: seu riso tem siso. Eu sei. Eu quero é que o senhor repense as minhas tolas palavras. E, olhe: tudo quanto há, é aviso. Matar a aranha em teia.

Se não, por que era que já me vinha a idéia desejável: que joliz

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas havia de ser era se meter um balaço no baixo da testa do Hermógenes?

A bronzes. O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já vai que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo dele. Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; eu queria bondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui.

Entendi o estado de jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro de primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo à traição, espreitar a gente por conta dos bebelos.

Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O

senhor vigie esses: comem o cru de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Só Candelário, que se prezava de bondoso, mandava, mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus.

– “E Deus, Diadorim?” – uma hora eu perguntei. Ele me olhou, com silenciozinho todo natural, daí disse, em resposta: – “Doca

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ramiro deu cinco contos de réis para o padre vigário de Espinosa...”

Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza.

Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas, outra vez, quando um inimigo foi pego, ele mandou: – “Guardem este.” Sei o que foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ia lá, sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou falar, ou rir, ele deixava a boca própria se abrir alta no meio, como sem vontade, boca de dor. Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele – um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas filho deve de gostar do pai. As tantas coisas me tonteavam: eu em claro. De repente, eu via que estava desejando que Zé Bebelo vencesse, porque era ele quem estava com a razão. Zé Bebelo devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rãs, com o inferno da jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, por fora, com todo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo do meu coração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numa árvore. Aí eu não queria ficar doido, no nem mesmo. Puxei conversa com Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido, de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me escutou depressa, tal duvidou de meu juízo: – “Riobaldo, onde é que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro, mas leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne é com quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens bem-comportados bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé Bebelo e aos cachorros do Governo?!” A espichado, nesse dia calei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição.

Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas de tristeza.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom.

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