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fio e digo. Há-de-o, outras coisas... O senhor duvida? Ara, mitilhas, o senhor é pessoa feliz, vou me rir... Era que ele gostava de mim com a alma; me entende? O Reinaldo. Diadorim, digo.

Eli, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça: boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto do campo, brabejando; cobra jararacuçu emendando sete botes estalados; bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas se acreditam. O demônio na rua, no meio do redemunho... Falo!

Quem é que me pega de falar, quantas vezes quero?!

Assim ao feito quando logo que desapeamos no acampo do Hermógenes; e quando! Ah, lá era um cafarnaum. Moxinife de más gentes, tudo na deslei da jagunçagem bargada. Se estavam entre o Furado-de-São-Roque e o Furado-do-Sapo, rebeira do Ribeirão da Macaúba, por fim da Mata da Jaíba. A lá chegamos num de-tardinha. Às primeiras horas, conferi que era o inferno.

Aí, com três dias, me acostumei. O que eu estava meio transtornado da viagem.

A ver o que eu contava: quem não conhecia o Reinaldo, ficou pronto conhecendo. Digo, Diadorim. Nós tínhamos em fim chegado, sem soberba nenhuma, contentes por topar com tanto número de companheiros em armas: de todos, todos eram garantia. Entramos no meio deles, misturados, para acocorar e prosear caçamos um pé de fogo. Novidade nenhuma, o senhor sabe – em roda de fogueira, toda conversa é miudinhos tempos.

Algum explicava os combates com Zé Bebelo, nós o nosso: roteiro todo da viagem, aos poucos para se historiar. Mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas.

Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito de macheza, ainda mais que pensavam que ele era novato. Assim loguinho,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas começaram, aí, gandaiados. Desses dois, um se chamava de alcunha o Fancho-Bode, tratantaz. O outro, um tribufu, se dizia Fulorêncio, veja o senhor. Mau par. A fumaça dos tições deu para a cara de Diadorim – “Fumacinha é do lado – do delicado...” – o Fancho-Bode teatrou. Consoante falou soez, com soltura, com propósito na voz. A gente, quietos. Se vai lá aceitar rixa assim de graça? Mas o sujeito não queria pazear. Se levantou, e se mexeu de modo, fazendo xetas, mengando e castanhetando, numa dança de furta-passo. Diadorim se esteve em pé, se arredou de perto da fogueira; vi e mais vi: ele apropriar espaços. Mas esse Fancho-Bode era abusado, vinha querer dar umbigada. E o outro, muito comparsa, lambuzante preto, estumou, assim como fingiu falsete, cantarolando pelo nariz:

Pra gauder, Gaudêncio...

E aqui pra o Fulorêncio?...

Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão, mas, o que havia de haver, eu já sabia... Oap!: o assoprado de um refugão, e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode, arrumou mão nele, meteu um sopapo: – um safado nas queixadas e uma sobarbada – e calçou com o pé, se fez em fúria. Deu com o Fancho-Bode todo no chão, e já se curvou em cima: e o punhal

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas parou ponta diantinho da goela do dito, bem encostado no gogó, da parte de riba, para se cravar deslizado com bom apoio, e o pico em pele, de belisco, para avisar do gosto de uma boa-morte; era só se soltar, que, pelo peso, um fato se dava. O fechabrir de olhos, e eu também tinha agarrado meu revólver. Arre, eu não queria presumir de prevenir ninguém, mais queria mesmo era matar, se carecesse. Acho que notaram. Ao que, em hora justa e certa, nunca tive medo. Notaram. Farejaram pressentindo: como cachorro sabe. Ninguém não se meteu, pois desapartar assim é perigoso. Aquele Fulorêncio instantâneo esbarrou com os acionados indecentes, me menos olhou uma vez, daí não quis me encarar mais. – “Coca, bronco!” – Diadorim mandou o Fancho se levantasse: que puxasse também a faca, viesse melhor se desempenhar! Mas o Fancho-Bode se riu, amistoso safado, como tudo tivesse constado só duma brincadeira: – “Oxente! Homem tu é, manovelho, patrício!” Estava escabreado. Dava nojo, ele, com a cara suja de maus cabelos, que cresciam por todo lado.

Guardei meu revólver, respeitosamente. Aqueles dois homens não eram medrosos; só que não tinham os interesses de morrer tão cedo assim. Homem é rosto a rosto; jagunço também: é no quem-com-quem. E eles dois não estavam ali muito estimados.

Comprazendo conosco, outros companheiros deram ar de amizade. E mesmo, por gracejo cordial, o Fulorêncio me

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas perguntou: – “Mano Velho, me compra o que eu sonhei hoje?”

Divertindo, também, para o ar dei resposta: – “Só se for com dinheiro da mãe do jacaré...” Todos riram. De mim não riram. O

Fulorêncio riu também, mas riso de velho. Cá pensei, silencioso, silenciosinho: “Um dia um de nós dois agora tem de comer o outro... Ou, se não, fica o assunto para os nossos netos, ou para os netos dos nossos filhos...” Tudo em mais paz, me ofereceram: bebi da januária azulosa – um gole me foi; cachaça muito nomeada. Aquela noite, dormi conseguintemente.

Sempre disse ao senhor, eu atiro bem.

E esses dois homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a bota no primeiro fogo que se teve com uma patrulha de Zé Bebelo. Por aquilo e isso, alguém falou que eu mesmo tinha atirado nos dois, no ferver do tiroteio. Assim, por exemplo, no circundar da confusão, o senhor sabe: quando bala raciocina.

Adiante falaram que eu aquilo providenciei, motivo de evitar que mais tarde eles quisessem vir com alguma tranquibérnia ou embusteria, em fito de tirarem desforra. Nego isso, não é verdade. Nem quis, nem fiz, nem praga roguei. Morreram, porque era seu dia, deles, de boa questão. Até, o que morreu foi só um. O outro foi pego preso – eu acho – deve de ter acabado com dez anos em alguma boa cadeia. A cadeia de Montes Claros,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas quem sabe. Não sou assassino. Inventaram em mim aquele falso, o senhor sabe como é esse povo. Agora, com uma coisa, eu concordo: se eles não tivessem morrido no começo, iam passar o resto do tempo todo me tocaiando, mais Diadorim, para com a gente aprontarem, em ocasião, alguma traição ou maldade. Nas estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses floreados não servem: o melhor mesmo, completo, é o inimigo traiçoeiro terminar logo, bem alvejado, antes que alguma tramóia perfaça! Também, sei o que digo: em toda a parte, por onde andei, e mesmo sendo de ordem e paz, conforme sou, sempre houve muitas pessoas que tinham medo de mim. Achavam que eu era esquisito.

Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem: que vivo ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho. Por meu bom, de desde mocinho. Alemão Vupes pouco me ensinou. Naquele tempo, já eu era. Dono de qualquer cano de fogo: revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno, trabuco, clavinote ou rifle. Honras não conto alto, porque acho que acerto natural assim é de Deus, dom dado. Pelo que compadre meu Quelemém me explicou: que eu devo de, noutra vida, por certo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas em encarnação, ter trabalhado muito em mira em arma. Seja?

Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na idéia. O

menos é no olho, compasso. Aquele Vupes era profeta? Certa vez, entrei num salão, os companheiros careciam que eu jogasse, mor de inteirar a parceiragem. Bilhar – quero dizer. Eu não sabia, total. Tinha nunca botado a mão naquilo. – “Faz mal nenhum” –

o Advindo disse. – “Você forma comigo, que sou tão no taco.

João Nonato, com o Escopil, jogam de contra-lado...” Aceitei.

Combinado ficou que o Advindo pudesse me superintender e pronunciar cada toque, com palavras e noção de conselhos, mas sem licença de apoiar mão em minha mão ou braço, nem encostar dedo no taco. É de ver que, mesmo do jeito, não bobeei um ceitil: o Advindo me lecionava o rumo medido da vantagem, e eu encurvava o corpo, amolecia barriga e taqueava o meu chofre, querendo aquilo no verde . era o justo repique –

umas carambolas de todos estalos, retruque e recompletas, com recuanço, ladeio perfeito, efeito produzido e reproduzido; por fim, eu me reprazia mais escutando rebrilhar o concoco daquelas bolas umas nas outras, deslizadas... E pois, conforme dizia, por meu tiro me respeitavam, quiseram pôr apelido em mim: primeiro, Cerzidor, depois Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas firme não pegou. Em mim, apelido quase que não pegava. Será: eu nunca esbarro pelo quieto, num feitio?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas No que foi, no que me vi, no acampo do Hermógenes.

Cabralhada. Tiba. De boa entrada, ao que me gasturei, no vendo. Aqueles eram mais de cento e meio, sofreúdos, que todos curtidos no jagunçar, rafaméia, mera gente. Azombado, que primeiro até fiquei, mas daí quis assuntação, achei, a meu cômodo. Assim, isto é, me acostumei com meiosó meu coração, naquele arranchamento. Propriamente, pessoal do Hermógenes.

Digo: bons e maus, uns pelos outros, como neste mundo se pertence. Por um que ruim seja, logo mais para adiante se encontra outro pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo com isso, a peito pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta gravidade. Se vivia numa jóvia, medindo mãos, em vavavá e conversa de festa, tomando tempo. Aqueles não desamotinavam. A ajunta, ali, assim, de tantos atrás do ar, na va-gagem: manga de homens, por zanzar ou estar à-toa ou parar formando rodas; ou uns dormindo, como boi malha; ou deitados no chão sem dormir – só aboboravam. Assaz toda espécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta larga de lã vermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto de fino pano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo sem chuva nenhuma; só que de branco vestido não se tinha: que com terno claro não se guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nu-de-Deus

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ou indecente descomposto, no meio dos outros, isso não e não.

Andando que sentados, jogando jogos, ferrando queda de braço, assoando o nariz, mascando fumo forte e cuspindo longe, e pitando, picando ou dedilhando fumo no covo da mão, com muita demora; o mais, sempre no proseio. Aventes baldrocavam suas pequenas coisas, trem objeto que um tivesse e menos quisesse, que custou barato. E ninguém furtava! Furtasse, era perigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sem bois. Ou cuidavam do espírito da barriga. O serviço que cumpriam era alimpar as armas bem – marcadas as cruzes nas feições das coronhas. E tudo o mais que faziam, que fosse coisa de sem-oque-fazer. Por isso – se dizia – que ali corresse muita besouragem, de falação mal, de rapa-tachos. Tinham lá até cachorros, vadiando geral, mas o dono de cada um se sabia; convinha não judiar com cão, por conta do dono.

Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que fossem mesmo de constância assim, por tempero de propensão; ou, então, por me arrediarem, porquanto me achando deles diverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eu soube que eu era mesmo de outras extrações. Semelhante por este exemplo, como logo entendi: eles queriam completo ser jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o que avistei,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas seguinte. Pois não era que, num canto, estavam uns, permanecidos todos se ocupando num manejo caprichoso, e isto que eles executavam: que estavam desbastando os dentes deles mesmos, aperfeiçoando os dentes em pontas! Se me entende? Senhor ver, essa atarefação, o tratear, dava alojo e apresso, dava até aflição em – aflito, abobante. Os que lavravam desse jeito: o Jesualdo – mocinho novo, com sua simpatia –, o Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles eram o Simião e o Acauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes de diante, a poder de gume de ferramenta, por amor de remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco – piranha redoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense que para esse gasto tinham instrumentos próprios, alguma liminha, ou ferro lixador. Não: aí era à faca. O Jesualdo mesmo se fazia, fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de encalcar o corte da faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia no cabo da faca, com uma pedra, medidas pancadas. Sem espelho, sem ver; ao tanto, que era uma faca de cabo de niquelado. Ah, no abre-boca, comum que babando, às vezes sangue babava. Ao mais gemesse, repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito doía. Agüentava.

Assim esquentasse demais; para refrescar, então ele bochechava a breve, com um caneco de água com pinga. Os outros dois, também. O Araruta procedia sozinho, igual, batendo na faca

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com a prancha de outra. O Nestor, não: para ele, o Simião, com um martelinho para os golpes, era quem raspava; mas decerto o Nestor ao outro para isso algum tanto pagasse. Abrenunciei. –

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