João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor, eu contando só assim? Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram – isso no estado de tudo percebi. O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo.
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor?
Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê.
Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante.
– “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém.
Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre:
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas peixinho pediu. Por quê? Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?!
Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha.
Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta.
Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu vencendo, aí estremeci num relance claro de medo – medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que eu de repente me perguntei, para não me responder: – “Você é o rei-dos-homens?...” Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão bravo.
Desfechei. Ventava em todas as árvores. Mas meus olhos viam só o alto tremer da poeira. E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe.
Conto. Reinaldo – ele se chamava. Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. Se sem peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, o amor podia vir mandado do Dê? Desminto. Ah – e Otacília? Otacília, o senhor verá, quando eu lhe contar – ela eu conheci em conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, se diz: quando os anjos e o vôo em volta, quase, quase. A Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Otacília, estilo dela, era toda exata, criatura de belezas. Depois lhe conto; tudo tem o tempo. Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que eu tive de compesar, numa mão e noutra, amor com amor. Se pode? Vem horas, digo: se um aquele amor veio de Deus, como veio, então – o outro?... Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e anfontem amanhã: é sempre. Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível. Digo: afora esses dois – e aquela mocinha Nhorinhá, da Aroeirinha, filha de Ana Duzuza – eu nunca supri outro amor, nenhum. E Nhorinhá eu deamei no passado, com um retardo custoso. No passado, eu,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas digo e sei, sou assim: relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua casa, nem das cinzas carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu incendiei: eu ficava escutando – o barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!
Logo que o Reinaldo me conheceu e me saudou, não tive mais dificuldade em dar certeza aos outros de minha situação.
Ao quase sem sobejar palavras, ele afiançou o meu valimento, para aquele mestre de cara redonda e bom parecer, que passava por arrieiro da tropa e se chamava Titão Passos. De fato, tropeiros não eram, eu soube, mas pessoal brigal de Joca Ramiro. E a tropa? Essa, que se estava para seguir porquanto pra o Norte, com os três lotes de bons animais, era para levar munição. Nem tiveram mais prevenimento de esconder isso de mim. Aquele Malinácio era o guardador: com as munições bem encobertadas. Defronte da casa dele, mesmo, e para cima e para baixo, o rio possuía as croas de areia – cada qual com seu nome, que os remadores do das-Velhas botavam, e que todos tanto conheciam. Três croas e uma ilha. Mas uma delas três, maior, também sendo meio ilha: isto é, ilha de terra, na parte de baixo,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com grandes pedras e árvores, e suja de matinho, capim, o alecrim viçoso remolhando suas folhagens nágua e o bunda-de-negro verde vivente; e croa, só de areia, na parte de cima. Uma croa-com-ilha, que é conforme se diz. A Croa-comIlha do Malinácio, dita. A lá, que aonde estava o oculto, a gente ia em canoa, baldear a munição. Os outros companheiros, afetados de tropeiros, sendo ó Triol e João Vaqueiro, e mais Acrísio e Assunção, de sentinelas, e Vove, Jenolim e Admeto, que acabavam de enquerir a carga na mulada. A gente, jantou-se, já se estava de saída, para toda viagem. Eu ia com eles.
Pois fomos, Nem tive pesar nenhum de não esperar o sinal da fogueira da mulher casada, filha do Malínácio. E ela era bonita, sacudida. Mulher assim de ser: que nem braçada de cana
– da bica para os cochos, dos cochos para os tachos. Menos pensei. A andada de noite principiava como sobre algodão –
produzida cuidadosa. Aquilo era munição de contos e contos de réis, a gente prezava grandes responsabilidades. Se vinha sem beiradear, mas sabendo o rio. Titão Passos comandava.
De seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro que espera viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe vá achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei.
Conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio de um meu
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dever honesto. Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto, transtornei um imaginar. Só não quis arrependimento: porque aquilo sempre era começo, e descoroçoamento era modo-de-matéria que eu já tinha aprendido a protelar. Mas o Reinaldo vinha comigo, no mesmo lote, e não caçava minha companhia, não se chegou para perto de mim, nem vez, não dava sinal de prosseguir amizade. A gente descarecia de cuidar dos burros, um por um, enfileirados naquela paciência, na escuridão da noite eles tudo enxergavam. Se eu não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida, tinha topado com o Menino? – era o que eu pensava. Veja o senhor: eu puxava essa idéia; e com ela em vez de me alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu.
Sorte? O que Deus sabe, Deus sabe. Eu vi a neblina encher o vulto do rio, e se estralar da outra banda a barra da madrugada.
Assaz as seriemas para trás cantaram. Ao que, esbarramos num sitiozinho, se avistou um preto, o preto já levantado para o trabalho, descampando mato. O preto era nosso; fizemos paragem.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Dali, rezei minha ave-mariazinha de de-manhã, enquanto se desalbardava e amilhava. Outros escovavam os burros e mulas, ou a cangalhada iam arrumando, a carga toda se pôde resguardar – quase que ocupou inteira a casinha do preto.O qual era tão pobre desprevenido, tivemos até de dar comida a ele e à mulher, e seus filhinhos deles, quantidade. E notícia nenhuma, de nada, não se achava. A gente ia ao menos dormir o dia; mas três tinham de sobreficar, de vigias. O Reinaldo se dizendo ser um deles, eu tive coragem de oferecer também que ficava; não tinha sono, tudo em mim era nervosía. O rio, objeto assim a gente observou, com uma croa de areia amarela, e uma praia larga: manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros.
O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos – conforme o Reinaldo disse-o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinhoda-croa.
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: – “É
formoso próprio...” – ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos se cruzavam. –
“Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras. – “É aquele lá: lindo!” Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea –
às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagem deles. –
“É preciso olhar para esses com um todo carinho...” – o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser
– e tudo num homem-d’armas, brabo bem jagunço – eu não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O
que houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas palavras. Achando que eu podia gostar mais dele. Sempre me lembro. De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o Manuelzinho-da-croa.
Depois, conversamos de coisas miúdas sem valor alheio, e eu tive uma influência para contar artes de minha vida, falar a
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas esmo leve, me abrir em amáveis, bom. Tudo me comprazia por diante, eu não necessitava de prolongares. – “Riobaldo...
Reinaldo...” – de repente ele deixou isto em dizer: – “... Dão par, os nomes de nós dois...” A de dar, palavras essas que se repartiram: para mim, pincho no em que já estava, de alegria; para ele, um vice-versa de tristeza. Que por quê? Assim eu ainda não sabia. O Reinaldo pitava muito; não acerto como podia conservar os dentes tão asseados; tão brancos. Ao em tanto que, também, de pitar se carecia: porque volta-emeia abespinhavam a gente os mosquitinhos chupadores, donos da vazante, uns mosquitinhos dançadinhos, tantos de se despertar. Eu fui contando minha existência. Não escondi nada não. Relatei como tinha acompanhado Zé Bebelo, o foguetório que soltei e o discurso falado, na Pedra-Branca, o combate dado na beira do Gameleiras, os pobres presos passando, com as camisas e as caras sujadas de secos sangues. – “Riobaldo, você é valente...
Você é um homem pelo homem...” – ele no fim falou. Sopesei meu coração, povoado enchido, se diz; me cri capaz de altos, para toda seriedade certa proporcionado. E, aí desde aquela hora, conheci que, o Reinaldo, qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja: sabe por que é que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal, ainda que quisesse. Por quê? Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.
Aí nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita que tinha, com lavores e três botóezinhos de abotoar. O que nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha. Dependurou o espelho num galho de marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que já estava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Me emprestou a navalha, mandou eu fazer a barba, que estava bem grandeúda.