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– “Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e legal!” Assim dizendo, na verdade sentava o dizer, com ira razoável. A gente devia mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o comércio, saquear na sebaça, barrear com estrumes humanos as paredes da casa do juiz-de-direito, escramuçar o promotor amontado à força numa má égua, de cara para trás, com lata amarrada na cauda, e ainda a cambada dando morras e aí soltando os foguetes! Até não arrombavam pipas de cachaça diante de igreja, ou isso de se expor padre sacerdote nu no olho da rua, e ofender as donzelas e as famílias, gozar senhoras casadas, por muitos homens, o marido obrigado a ver? Ao quando falava, com fogo que puxava de si, Zé Bebelo tinha de se esbarrar, ia até na varanda ou na janela, a apitar o apito, ditar as boas ordens. Daí, mais renovado, voltava para perto de mim, repunha: – “Ah, cujo vou, siô Baldo, vou. Só eu que sou capaz de fazer e acontecer. Sendo porque fui eu só que nasci para tanto!”

Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal.

Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa.

Mas, minha vida na fazenda, era ruim ou era boa? Se melhor era. Arre, eu estava feito um inhampas. Aí lordeei. Me acostumei com o fácil movimento, entrei de amizade com os capangas. Sempre chegavam pessoas de fora, que conversavam em sozinhos com Zé Bebelo, gente de cidade. De um, eu soube que era delegado, em missão. E ele me apresentava com a honra de: Professor Riobaldo, secretário sendo. Nas folgas vagas, eu ia com os companheiros, obra de légua dali, no Leva, aonde estavam arranchadas as mulheres, mais de cinqüenta. Elas vinham vindo, tantas, que, quase todo dia, mais tinham de baratear. Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava: –

“Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mão estadas raparigas? Ond’é?” Mesmo cachaça ele fornecia, com regra. –

“Melhor, se não eles por si providenceiam, dão logo em abusos, patuléias...” – isto explicava. Demais, de tudo ali se prazia fartura confortável! Abastada comida, armamento de primeira, monte de munição, roupas e calçados para os melhores. E o cobre para semanal de pagamento, pois nenhum daqueles

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas homens estava ali por amor-de-deus, mas ajeitando seu meio de viver. Diziam que era dinheiro do cofre do Governo. Parecia.

A tal que, enfim, veio o dia de se sair, guerreiramente, por vales e montes, a gente toda. Oi, o alarido! Aos quantos gritos, um araral, revôo avante de pássaros – o senhor mesmo nunca viu coisa assim, só em romance descrito. De glória e avio de própria soldadesca, e cavalos que davam até medo de não se achar pasto que chegasse, e o pessoal perto por uns mil. Acompanhado dos chefes-de-turma – que ele dava patente de serem seus sotenentes e oficiais de seu terço – Zé Bebelo, montado num formudo ruço-pombo e com um chapéu distintíssimo na cabeça, repassava daqui p’r’ali, eguando bem, vistoriava. Me chamou para junto, eu tinha de ter à mão um caderno grosso, para por ordem dele assentar nomes, números e diversos, amanuense. Com eles eu estava vindo, então, o senhor vê. Vinha, para conhecer esse destino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer que, quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele dava baixa e alta de me ir m’embora.

Digo que fui, digo que gostei. A passeata forte, pronta comida, bons repousos, companheiragem. O teor da gente se distraía bem. Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras.

Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ser ranço ou discórdia consigo restava para trás. Era o enfim.

Era. – “Mais, mais, há-de dará é para diante, quando se formar combate!” – uns proseavam. Zé Bebelo querendo. Sabia o que queria, homem de muita raposice. Já no sair da Nhanva, tinha composto seu povo em avulsos – cada grupo, cada rumo. Um pelo São Lamberto, da mão direita; outro pegou o Riacho Fundo e o Córrego do Sanhar; outro se separou da gente no Só-Aqui, indo o Ribeirão da Barra; outro tomou sempre à mão esquerda, encostando ombro no São Francisco; mas nós, que vínhamos mais Zé Bebelo mesmo em capitania, rompemos, no meio, seguindo o traço do Córrego Felicidade. Passamos perto de Vila Inconfidência, viemos acampar no arraial Pedra-Branca, beira do Água-Branca. E tudo correndo bem. Dum batalhão para outro, se expedia gente com ordens e recados. Arrastávamos uma rede grande, peixe grande por pegar. E foi. Eu não vi essa célebre batalha – eu tinha ficado na Pedra-Branca. Não por medo, não.

Mas Zé Bebelo me mandou: – “Tem paciência, você espera, para reunir os municipais do lugar e fazer discurso, logo que um estafeta vier relatar qual foi nossa primeira vitória...”

Se deu, o que se disse. Só que, em vez de estafeta, a galope, veio Zé Bebelo mesmo. Eu tinha ficado com ruma de foguetes, para soltar, e foi festa. Zé Bebelo mandou dispor uma tábua por

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cima de um canto de cerca, conforme ele ali subiu e muito falou.

Referiu. Para lá do Rio Pacu, no município de Brasília, tinham volteado um bando de jagunços – o com o valentão Hermógenes à testa – e derrotado total. Mais de dez mortos, mais de dez cabras agarrados presos; infelizmente só, foi que aquele Hermógenes conseguira de fugir. Mas não podia ir a longe! Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois, enxeriu que eu falasse discurso também. Tive de. – “Você deve de citar mais é em meu nome, o que por meu recato não versei. E falar muito nacional...” – se me se soprou. Cumpri. O que um homem assim devia de ser deputado – eu disse, encalquei. Acabei, ele me abraçou. O povo eu acho que apreciava. Daí, quando se estava no depois do almoço, vieram cavaleiros nossos, tangendo o troço de presos. Senti pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se via que não tinham esperança nenhuma decente. Iam de leva para a cadeia de Extrema, e de lá para outras cadeias, de certo, até para a da Capital. Zé Bebelo, olhando, me olhou, notou moleza. – “Tem dó não. São os danados de façanhosos...” Ah, era. Disso eu sabia.

Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Pensei que agora podíamos merece maior descanso. Ah, sim? – “Montar e galopar. Tem mais. Tem...” – Zé Bebelo chamou. Tocamos. Conversando, no caminho, eu perguntei, não sei: – “E Joca Ramiro?” Zé Bebelo tiscou de ombros, parece que não queria falar naquele. Daí me deu um gosto, de menor maldade, de explicar como era fabuloso o estado de Joca Ramiro, como tudo ele sabia e provia, e até que trazia um homem só para o oficio de ferrador, com a tendinha e as ferramentas, e o tudo mais versante aos animais. O que ouvindo, Zé Bebelo esbarrou.

– “Ah, é uma idéia que vale, ora veja! Isso a gente tem de conceber também, é o bom exemplo para se aproveitar...” – ele atinou. E eu, que já ia contar mais, do diverso, das peripécias que meu padrinho dizia que Joca Ramiro inventava no dar batalha, então eu como me concertei em mim, e calei a boca. Mire veja o senhor tudo o que na vida se estorva, razão de pressentimentos.

Porque eu estava achando que, se contasse, perfazia ato de traição. Traição, mas por quê? Dei um tunco. A gente não sabe, a gente sabe. Calei a boca toda. Desencurtamos os cavalos.

No entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo. Aí, vi, aprendi. A metade dos nossos, que se apeavam, no avanço, entremeados disfarçantes, suas armas em arte – escamoteados pelas árvores – e de repente ligeiros se jazendo: para o rastejo;

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com as cabeças, farejavam; toda a vida! Aqueles sabiam brigar, desde de nascença? Só avistei isso um instante. Sendo que seguindo Zé Bebelo, reviramos volta, para o Gameleiras, onde houve o pior. O que era, era o bando do Ricardão, que quase próximo, que cercamos. Para acuar, só faltando cães! E demos inferno. Se travou. Tiro estronda muito, no meio do cerrado: se diz que é estampido, que é rimbombo Tive noção de que morreram bastantes. Vencemos. Não desci de meu animal. Nem prestei, nem estive, no fim, como o galope se desabriu: os homens perseguindo uns, que com o mesmo Ricardão se escapavam. Mas mais não se aproveitou, o Ricardão já tinha tido fuga. Então os nossos, de jeriza, com os oito prisioneiros feitos queriam se concluir. – “Eh, de jeito nenhum, epa! Não consinto covardias de perversidade!” – Zé Bebelo se danou. Apreciei a excelência dele, no sistema de não se matar. Assim eu quis que o ar de paz logo revertesse, o alimpado, o povo gritando menos.

Aquele dia tinha sido forte coisa. De longe e sossego eu careci, demais. Se teve pouco. Arranjado o preciso, só se tomou prazo breve, porque recombinaram por diante os projetos e desarrancamos para a Terra Fofa, quase na demarca com o Grão-Mogol. Mas lá não cheguei. Em certo ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade. Debelei que descuidassem de mim, restei escondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eu não carecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo, desdizer: – “Desanimei, declaro de retornar para o Curralim...”

Não podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisão tomei, logo me deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, a conversação.

Nem eu não estava para ter confiança nenhuma em ninguém. A bem: me fugi, e mais não pensei exato. Só isso. O senhor sabe, se desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem sustância narrável.

Meu cavalo era bom, eu tinha dinheiro na algibeira, eu estava bem armado. Virei, vagaroso. Meu rumo mesmo era o do mais incerto. Viajei, vim, acho que eu não tinha vontade de chegar em nenhuma parte. Com vinte dias de remanchear, e sem as trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das Velhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma mulher, que muito me agradou – o marido dela estava fora, na redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me disse: – “Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas e janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo, dando avisos.” Eu falei: – “Você acende uma fogueira naquele alto, eu enxergo, eu cá venho...” Ela falou: – “Ao que não posso, alguém mais avistando havia de poder desconfiar.” Eu falei: –

“Assim mesmo, eu quero. Fogueira – uma fogueirinha de nada...”

Ela falou: – “Quem sabe eu acendo...” A gente sérios, nem se sorrindo. Aí, eu fui.

Mas o pai dessa mulher era um homem finório de esperto, com o jeito de tirar da gente a conversa que ele constituía. A casa dele – espaçosa, casa-de-telha e caiada – era na beira, ali onde o rio tem mais troas. Se chamava Manoel Inácio, Malinácio dito, e geria uns bons pastos, com cavalhada pastando, e os bois. Me deu almoço, me pôs em fala. Eu estava querendo ser sincero. E notei que ele no falar me encarava e no ouvir piscava os olhos; e, quem encara no falar mas pisca os olhos para ouvir, não gosta muito de soldados. Aos poucos, então, contei: que dos zé-bebelos não tinha querido fazer parte; o que era a valente verdade. – “E Joca Ramiro?” – ele me perguntou. Eu disse, um pouco por me engrandecer e pôr minha prosa, que já tinha servido Joca Ramiro, e com ele conversado. Que, mesmo por isso, é que eu não podia ficar com Zé Bebelo, porque meu seguimento era por loca Ramiro, em

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas coração em devoção. E falei no méu padrinho Selorico Mendes, e em Aluiz e Alarico Totõe, e de como foi que Joca Ramiro pernoitou em nossa fazenda do São Gregório. Mais coisas decerto eu disse, e aquele homem Malinácio me ouvia, só se fazendo de sossegado. Mas eu percebi que ele não estava. Deu jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que ali miasmava braba maleita. Não acertei. Eu queria esperar, para ver se a fogueira por minha sorte se acendia, eu tinha gostado muito da filha dele casada. Por um instante, o sabido do homem se tardou no que fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armar minha rede na sombra, e descansar – eu disse que não andava bem de saúde, – isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para um quarto, onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá à Ia vontade, fechou a porta. Ferrei; abraçado com minhas armas.

Acordei só no aquele Malinácio me chamando para jantar.

Cheguei na sala, e dei com outros três homens. Disseram de si que tropeiros eram, e estavam assim vestidos e parecidos. Mas o Malinácio começou a glosar e reproduzir minha conversa tida com ele – disso desgostei, segredos frescos contados não são para todos. E o arrieiro dono da tropa – que era o de cara redonda e pra clara – me fez muita interrogação. Não estive em boas cócoras. Construí de desconfiar. Não do fato d’ele tal

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas encarecer – pois todo tropeiro sempre muito pergunta ; mas do jeito como os outros dois ajudavam aquele a me ver, de tudo perseverado tomando conta. Ele queria saber para onde eu mesmo me ia além. Queria saber por que, se eu punia por loca Ramiro, e estava em armas, por que então eu não tinha caçado jeito de trotar para o Norte, a fito de com o pessoal ramiros me juntar? Quem desconfia, fica sábio: dizendo como pude, muito confirmei; mas confirmei acrescentando que chegara até ali por dar volta cautelosa, e mesmo para sobre ter a calma de resolver os projetos em meu espírito. Ah, mas ah! – enquanto que me ouviam, mais um homem, tropeiro também, vinha entrando, na soleira da porta. Agüentei aquele nos meus olhos, e recebi um estremecer, em susto desfechado. Mas era um susto de coração alto, parecia a maior alegria.

Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O

Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atavessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho.

Arvoamento desses, a gente estatela e não entende; que dirá o

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