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Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. – “Você também é animoso...” – me disse. Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade. Arre vai, o canoeiro cantou, feio, moda de copla que gente barranqueira

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas usa: “... Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar um gole d’água, mas pedir tua benção...” Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a de lá.

Ao ver, o menino mandou encostar; só descemos. – “Você não arreda daqui, fica tomando conta!” – ele falou para o canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, desde que amarrou a corrente num pau-pombo. Aonde o menino queria ir? Sofismei, mas fui andando, fomos, na vargem, no meio-avermelhado do capim-pubo. Sentamos, por fim, num lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero bamburral.

Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase calados, somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar.

– “Amigo, quer de comer? Está com fome?” – ele me perguntou. E me deu a rapadura e o queijo. Ele mesmo, só tocou em miga. Estava pitando. Acabou de pitar, apanhava talos de capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de milho-verde, é dele que a capivara come. Assim quando me veio vontade de urinar, e eu disse, ele determinou: – “Há-te, vai ali atrás, longe de mim, isso faz...” Mais não conversasse; e eu reparei, me acanhava, comparando como eram pobres as minhas roupas, junto das dele.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a cara de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do mato, me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava perto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, forte, com as feições muito brutas. Debochado, ele disse isto: –

“Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...” Aduzido fungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava ter tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático sorriso. – “Hem, hem? E eu? Também que se sorriu, sem malícia e sem bondade. Não piscava os olhos. O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra, entre duas águas, menos fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa passeada.

Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada, para o rumo de acima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem. Beiras sem praia, tristes, tudo parecendo meio podre, a deixa, lameada ainda da cheia derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze metros. E se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e se curvou, queria quebrar um galho de maracujá-do-mato. Com o mau jeito, a canoa desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse um grito. – “Tem nada não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então, vocês

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só, firme mas sem vexame: – “Atravessa!” O canoeiro obedeceu.

Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo! Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei do Caboclo-d’Água, não me lembrei do perigo que é a “onça-d’água”, se diz – a ariranha – essas desmergulham, em bando, e becam a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar, de estudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, quando canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar nela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a constância de não afundar, e aí ir seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o canoeiro me contradisse: – “Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de pau-d’óleo não sobrenadam...” Me deu uma tontura. O ódio que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente tinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de madeira burra! A mentira fosse – mas eu devo de ter arregalado doidos olhos. Quieto, composto, confronte, o menino me via. –

“Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não sei nadar...” O

menino sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.”

Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. –

“Você nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: – “Costumo não...” – e, passado o tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homem mais valente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, aro!” – o mulato veio insistindo. E, por aí, eu consegui falar alto, contes-tando, que não estávamos fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer: –

“Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dele.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, tem lances, esses – se riscam tão depressa, olhar da gente não acompanha. Urutu dá e já deu o bote? Só foi assim.

Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E

limpou a faca no capim, com todo capricho. – “Quicé que corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na bainha.

Meu receio não passava. O mulato podia voltar, ter ido buscar uma foice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o que seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso, encarecendo que a gente fosse logo embora. – “Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem...” – ele me moderou, tão gentil. Me alembrei do que antes ele tinha falado, de seu pai.

Indaguei: – “Mas, então, você mora é com seu tio?” Aí ele se levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão, vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, medo do mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.

Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o remadorzinho estava dormindo espichado dentro da canoa, com

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas os seus mosquitos por cima e a camisa empapada de suor de sol.

Se alegrou com o resto da rapadura e do queijo, nos trouxe remando, no meio do rio até mais cantava. Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual. Menos que, por vez, me pareceu depressa demais. – “Você é valente, sempre?” – em hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O

sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.

Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, ele acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele.

Mas não carecia. Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.

Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima, eu sei.

Dou, de. O senhor não me responda. Mais, que coragem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo? Por duas, por uma, isto que eu vivo pergunta de saber, nem o compadre meu Quelemém não me ensina. E o que era que o pai dele tencionava? Na ocasião, idade minha sendo aquela, não dei de mim esse indagado. Mire veja: um rapazinho, no Nazaré, foi desfeiteado, e matou um homem. Matou, correu em casa. Sabe o que o pai dele temperou? – “Filho, isso é a tua maioridade. Na velhice, já tenho defesa, de quem me vingue...” Bolas, ora.

Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta.

Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempre aí, capaz, passa. O Chapadão é em sobre longe, beira até Goiás, extrema. Os gerais desentendem de tempo. Sonhação – acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para quê? por quê? Eu estava no porto do de-Janeiro, com minha capanguinha na mão, ajuntando esmolas para o Senhor Bom-Jesus, no dever de pagar promessa feita por minha mãe,

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