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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Domingos Touro, no Alambiques, Major Urbano na Macaçá, os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau dona Próspera Blaziana. Dona Adelaide no Campo-Redondo, Simão Avelino na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do Canastrão, o Coronel Camucim nos Arcanjos, comarca de Rio Pardo; e tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazenda some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia, Januária, Carinhanha, Urubu, Pilão Arcado, Xiquexique e Sento-Sé.”

Demais falasse, tendo conhecido o Neco, se lembrava de quando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas eras do ano de 79: tomou todos os portos – Jatobá, Malhada e Manga –

fez como quis; e pôs sede de suas fortes armas no arraial do jacaré, que era a terra dele. – “Estive lá, com carta firmada pelo Capitão Severiano Francisco de Magalhães, que era companheiro combinado do Neco. O pessoal que eles numeravam em guerra comprazia uma babilônia. Botavam até barcas, cheias de homens com bacamartes, cruzando para

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas baixo e para cima o rio, de parte a parte. Dia e noite, a gente ouvia gritos e tiros. Cavalaria de jagunços galopando, saindo para distâncias marcadas. Abriam festa de bomba-real e foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavam tocar o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos, arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em Casa-da-Câmara...”

Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso.

Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga.

Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrete e faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira. Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que tinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de espada e em formato de folha de gravata. – “Sentei em mesa com o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefia dele, paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam e rendiam respeito.” Meu padrinho, hóspede do Neco; de recontar isso ele sempre se engrandecia. Naquela dita ocasião, todas as pessoas importantes tinham fugido da Januária, desamparadas de poder-de-lei, foram esperar melhor sorte em Pedras-de-Maria-da-Cruz. – “Neco? Ah! Mandou mais que Renovato, ou o Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão e os

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Filgueiras...” E meu padrinho me mostrou um papel, com escrita de Neco – era recibo de seis ancorotes com pólvora e uma remessa de iodureto – a assinatura rezava assim: Manoel Tavares de Sá.

Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e morar em casa de um amigo dele, Nhô Maroto, cujo Gervásio Lê de Ataíde era o verdadeiro nome social. Bom homem. Lá eu não carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Maroto de pagar todo fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até de botina e roupa que eu precisasse. Eu comia muito, a despesa não era pequena, e sempre gostei do bom e do melhor. A ser que, alguma vez, Nhô Maroto me pedia um ou outro serviço, usando muito bico de palavreado, me agradando e dizendo que estimava como um favor. Nunca neguei a ele meus pés e mãos, e mesmo não era o nenhum trabalho notável. Vai, acontece, ele me disse: – “Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você jeito não tem. Você não é habilidoso.” Isso que ele me disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta, ao Mestre Lucas. Ele me olhou, um tempo – era homem de tão

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva dele. Assim Mestre Lucas me respondeu: – “É certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você da-va...” E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada.

Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosa’uarda – moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José – ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei – carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas quiabo – supimpas iguarias. Os doces, também. Estimei seo Assis Wababa, a mulher dele, dona Abadia, e até os meninos, irmãozinhos de Rosa’uarda, mas com tamanha diferença de idade. Só o que me invocava era a linguagem garganteada que falavam uns com uns, a aravia. Assim mesmo afirmo que a Rosa’uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de: – “Meus olhos.”

Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei demais de estrangeiro.

Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho muito fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu dinheiro, e que tanto avarava. Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver – na verdade, também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros negócios – e trazia para mim caixetas de doce de buriti ou de araticum, requeijão e marmeladas. Cada mês de novembro, mandava me buscar. Nunca ralhou comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisa nenhuma a ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não gostava dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho.

Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei. Só o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com que no fim de sua velhice se ajuntou.

Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi eu menos merecia.

Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele.

Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.

Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando tão moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.

Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das mulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um dos homens – Alarico Totõe – estava expondo, explicando. Todos continuavam sem tomar assentos. Alarico Totõe sendo um fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho. Ele, com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de bem.

Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por uma questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava olhando, com uma admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão.

Adrede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados, ombreavam com ele dois jagunões; depois eu soube – que seus segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O outro – Hermógenes – homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda amontoava, com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter pescoço.

As calças dele como que se enrugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se arrastava – me pareceu –

que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando: será que a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitas fumaças.

Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse a cara.

Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca, enegrecendo.

No terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha, pois que viajavam de noite, dando surpresa e desmanchando rastro. – “Tem ótimo reconditório...” – meu padrinho consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquela gente, até aonde o poço do Cambaubal, num fechado, mato caapuão.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria pronto os olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda, e pôs as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes veio para sair comigo, mais o outro homem – um cabeça-chata alvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava, até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, viemos até onde estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.

Aí mês de maio, falei, com a estrela-d’alva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros.

Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem.

Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão.

Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim – feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do aflor. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga.

Couro raspa em couro, os cavalos dão de orelha ou batem com o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquejo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. É diferente.

Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam – e restavam esperando assim – a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?

Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro. Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar.

– “Capixum, é eu, mais o siô Hermógenes...” – o cabeça-chata falou aviso.

– “A bom, Alaripe!” – o de lá respondeu.

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