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Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu sabia: o que eu estava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me pedisse para voltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés se ajoelhava.

E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o que era que eu ia fazer, caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me repartir no miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis, então, cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas nos bobos olhos.

Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei alto que seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo avesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogo de misericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sosseguei as esporas. Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causa de minha vida, quando entramos no Curralinho.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante.

No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresa me declararam: a de que a Rosa’uarda agora estava sendo noiva, para se casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos derradeiros meses para lá vindo. Assumi, em trela, tristeza e alívio

– aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais. Nublo em que me vi, mas me governei: trancei as pernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim, acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços; assim fossem cuidar que essa minha viagem era por tramar importante encargo para o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor. Seo Assis Wababa se engordava concordando, trouxe canjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei – na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.

Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse – seo Emílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo Curralinho, ele já era meu conhecido. Tresdobrado homem.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Sendo que entendia tudo de manejar com armas, mas viajava sem cano nenhum; dizia: – “Níquites! Desarmado eu completo, eu assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no sertão.” Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar.

Mesmo dizia: – “Senhor atira bem, porque atira com espírito.

Sempre o espírito é que acerta...” Soante que dissesse: sempre o espírito é que mata... Mas, a bem, agora aquela hora, estava lá o Vupes, assim foi. Porque, num desastre de instante, eu tinha pegado a pensar – o que resolvia minha situação era trabalhar para ele, se viajar vendendo ferramentas por aí, descaroçador de algodão. Nem ponderei, mas disse: – “Seo Vupes, o senhor não quererá me ajustar, em seu serviço?” Minha bestice. “Níquites!” –

conforme que o Vupes constante exclamava. Ali nem acabei de falar, e em mim eu já estava arrependido, com toda a velocidade.

Idéia nova que imaginei: que, mesmo pessoa amiga e cortês, virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante. Mordi boca, já tinha falado. Ainda quis emendar, garantindo que era por gracejo; mas seo Assis Wababa e o Vupes me olhavam a menos, com desconfianças, me senti rebaixado demais. A contra mim tudo contra, o só ensejo das coisas me sisava. Dali logo saí, me despedindo bem. Aonde? Só se fosse ver o Mestre Lucas. Assim vim andando, mediante desespero. Me alembro, vinha andando e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas agora era que eu pegava a pensar livre e solto na Rosa’uarda, lindas pernas as lindas grossas, ela no vestido de nanzuque, nunca havia de ser para meu regalo. Dum modo senti, como me recordei, depois, tempos, quando foi arte se cantar uma cantiga: Seu pai fosse rico,

tivesse negócio,

eu casava contigo

e o prazer era nosso...

Isso, mas totalmente; às vezes.

Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram – pelo pulo fino de sem ver se dar – a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. As vezes essa idéia me põe susto. Mas, o senhor veja: cheguei em casa do Mestre Lucas, ele me saudou, tão natural. Achei também tudo o natural, eu estava era cansado. E, quando Mestre Lucas me perguntou se eu vinha era de passeata, ou de recado da fazenda, expliquei que não: que eu tinha merecido licença de meu padrinho, para começar vida

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas própria em Curralinho ou adiante, a fito de desenvolver mais estudos e apuramento só de cidade. Dizendo o que disse, eu mesmo jurava que Mestre Lucas não ia acreditar. Mas acreditou, até melhor. Sabe o senhor por quê? Porque, naquele dia, justo, ele estava remexido no meio de um assunto, que preparava o desejo dele para aí me acreditar. Digo: ele me ouviu, e disse: –

“Riobaldo, pois você chega em feita ocasião!”

Aí me explicou: um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva, altas beiras do Jequitaí, para o ensino de todas as matérias estava encomendando um professor. Com urgência, era homem de sua situação, garantia boa paga. Assim queria que Mestre Lucas fosse, que deixasse alguém dando escola no lugar dele, no Curralim, por uns tempos; isso, claro, não podia. Eu queria ir?

– “O senhor acha que eu posso?” – perguntei; para principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem. – “Ei, pode!” – o Mestre Lucas declarou. Já que estava acondicionando numa bruaca os livros todos – geografia, arimética, cartilha e gramática – e borracha, lápis, régua, tinteiro, tudo o que pudesse ter serventia. Aceitei. Um entusiasmo nosso me botava brioso. Melhor que era para logo, para o seguinte: dois camaradas do dito fazendeiro estavam ali no Curralinho, esperando decisão, agora me levavam. Dona Dindinha, mulher

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umas lágrimas de bondade: – “Tem tanta gente ruim neste mundo, meu filho...

E você assim tão moço, tão bonito...” Aí, nem cheguei a ver aquela menina Miosótis. A Rosa’uarda, vi, de longes olhares.

Os dois camaradas, em tanto percebi, eram capangas. Mas sujeitos de seu trato, sem altos-e-baixos nem as maiores asperezas, me deram toda consideração. Viajamos juntos quatro dias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o Riachão e enxergando à mão esquerda os vultos da Serrado-Cabral. Meus companheiros quase que não me informavam, de nada ou nada.

Tinham outras ordens. Mas, mesmo antes da gente entrar em terras do Palhão, fui vendo coisas calculosas, dei meio para duvidar.

Patrulhas de cavaleiros em armas; troco de conversa de vigiação; e uma tropa de burros cargueiros, mas no meio dos tocadores vinham três soldados. Mais perto, em maiores me vi. Chegar lá declamava surpresa. A Nhanva enxameava de gente homem –

pralaprá de feira em praça. E era vistosa fazenda assobradada, com grandes currais e um terreirão. Vi logo o dono.

Ele era imediatamente estúrdio, vestido de brim azul e calçando botas amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Fui indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; um lenço no pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom, despenteado alto, topete arrepiadinho. Apressei o passo, e ele esbarrou, com as mãos nas cadeiras. Me olhou frenteante, deu risada – de certo nem estava sabendo quem eu era. E gritou, caçoando: – “Me vem com o andar de sapo, me vem...

Ah-oh-ah, o destempo de estar sendo debochado se irou de mim. Esbarrei, também. Me fiz mouco. Mas ele veio para mim, então, saudou, com um modo sensato de simpatia. Adiado eu disse: – “Sou o moço professor...” A alegria dele, me ouvindo, foi estupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas e agrados, subiu a escada comigo, me levou para um quarto, lá dentro, ligeiro, parecia até que querendo me esconder de todos. Uma doidice, de quê? Ah, mas, ah – esse quem era – o homem? Zé Bebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava mais para fora uma real novidade.

Disse ao senhor? – eu estava pensando que ia dar escola para os filhos dum fazendeiro. Engano. O comum, com Zé Bebelo, virava diferente adiante, aprazava engano. Estudante sendo ele mesmo. Me avisou. Quis antever os cadernos, livros, pegar com as mãos. Assim ler e escrever, e as quatro contas, ele já soubesse, consumia jornais. Remexeu, tarabuz, e tudo foi

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas arrumando na mesa grande do quarto, senhor-jesus-cristo que assoviava, o cantarolado. Mas – e aí comigo falou sério –

naquilo se tinha de sungar segredo: eu visse. – “Vamos constar é que estou assentando os planos! Você fica sendo meu secretário.” Nesse mesmo ido dia, a gente começou. Aquele homem me exercitou tonto, eh, ô, me fino fiz. Ânsia assim e anfa, e poder de entender demais, nunca achei quem outro. O

que ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim. Queimava por noite duas, três velas. Ele mesmo falava: – “Relógio não vou olhar. Aí estudo, estudo, até que estico um cochilão. Cochilão me vem: então espairo o livro, e me deito, que me durmo.” Pela sua vontade dele, simples. De dia, estávamos debulhando páginas, e de repente se levantava ele, chegava na janela, apitava num apito, ministrava aquela brama de ordens: dez, vinte executações duma vez. O pessoal corria, cumpriam; aquilo semelhava um circo, bom teatro. Mas, com menos de mês, Zé Bebelo se tinha senhoreado de reter tudo, sabia muito mais do que eu mesmo soubesse. Aí, a alegria dele ficou demasiadamente. Sobrevinha com o livro, me fazia de queima-cara um punhado de perguntas. Ao tanto eu demorava,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas treteava no explicar, errando a esmo, caloteava. Ai-ai-ai d’ele atalhar as minhas palavras, mostrar no livro que eu estava falso, corrigir o dito, me dar quinau. Se espocava às gargalhadas, espalmava mão, expendia outras normas, próprias de sua idéia lá dele – e sendo feliz de nessas dificuldades me ver, eu )a ignorante, esmorecido e escabreado. Só aí, digo, foi que ele ficou gostando de mim. Certo. Me deu um abraço, me gratificou em dinheiro, me fez firmes elogios – “Siô Baldo, já tomei os altos de tudo! Mas carece de você não ir s’embora, não, mas antes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto que vamos por esse Norte, por grandes fatos, que você não se arrependerá...” – me disse – “... Norte, más bandas.” Soprou, só; enche que ventava.

Porque ele tinha me estatutado os todos projetos. Como estava reunindo e pervalendo aquela gente, para sair pelo Estado acima, em comando de grande guerra. O fim de tudo, que seria: romper em peito de bando e bando, acabar com eles, liquidar com os jagunços, até o último, relimpar o mundo da jagunçada braba. – “Somente que eu tiver feito, siô Baldo, estou todo: entro direito na política!” Antes me confessou essa única sina que ambicionava, de muito coração: e era de ser deputado.

Pediu segredo, e eu não gostei. Porque eu estava sabendo que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas todos já aventavam aquela toleima, por detrás dele até antecipavam alcunha: “o Deputado”... O mundo é assim. Mas, mesmo desse jeito, o pessoal todo não regateava a ele a maior dedicação de respeito. Por via de sua macheza. Ah, Zé Bebelo era o do duro – sete punhais de sete aços, trouxados numa bainha só! Atirava e tanto com qualquer quilate de arma, sempre certeira a pontaria, laçava e campeava feito um todo vaqueiro, amansava animal de maior brabeza – burro grande ou cavalo; duelava de faca, nos espíritos solertes de onça acuada, sem parar de pôr; e medo, ou cada parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia. Contavam: ele entrava de cheio, pessoalmente, e botava paz em qualquer rutuba. Ô homem couro-n’água, enfrentador! Dava os urros. E mesmo, para ele, parecia não ter nada impossível. Com tanta bobéia assim, desfrutável e escurril, e ai de quem pensasse em poitar olho de chacotas: morria vertiginoso... – “O único homem-jagunço que eu podia acatar, siô Baldo, já está falecido... Agora, temos de render este serviço à pátria – tudo é nacional!” Esse que já tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante fama. Se dizia, tinha estudado a vida dele, nos pormenores, com tanta devoção especial, que até um apelido em si se apôs: Bebelo; causa que, de nome, em verdade, era José Rebelo Adro Antunes.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

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