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Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui – circunstância de cinco léguas – minha mãe e eu. No porto do Rio-de-Janeiro

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Josozinho, o negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há.

Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de depósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!... Depois o senhor vá, verá. Pois, naquela ocasião, já era quase do jeito. O

de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de-Janeiro em canoa – ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto, mais alto, onde não dá febre de maresia. A descida do barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia vem e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro.

Dezembro dando, é certo. Todo o tempo, as canoas ficam esperando, com as correntes presas na raiz descoberta dum pau-d’óleo, que tem. Tinha também umas duas ou três gameleiras, de outrora, tanto recordo. Dá dó, ver as pessoas descerem na lama aquele barranco, carregando sacos pesados, muita vez. A vida aqui é muito repagada, o senhor concorde. Outro, meu tempo, então, o que é que não havia de ser?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto – metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode. Ora, lugar de tirar esmola era no porto. Mãe me deu uma sacola. Eu ia, todos os dias. E esperava por lá, naquele parado, raro que alguém vinha. Mas eu gostava, queria novidade quieta para meus olhos. De descer o barranco, me dava receio. Mas espiava as cabaças para bóia de anzol, sempre dependuradas na parede do rancho.

Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente.

Dois ou três homens de fora, comprando alqueires de arroz.

Cada saco amarrado com broto de buriti, a folha nova – verde e amarela pelo comprido, meio a meio. Arcavam com aqueles sacos, e passavam, nas canoas, para o outro lado do de-Janeiro.

Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se podia ver um carro-de-bois parado, os bois que mastigavam com escassa baba, indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas água mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve. Até hoje é assim, por borco.

Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéude-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu.

Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance.

– “Lá é bom?” – perguntei. – “Demais...” – ele me respondeu; e continuou explicando: – “Meu tio planta de tudo.

Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou de morte de minha tia...” Assim parecesse que tinha vergonha, de estarem comprando aquele arroz, o senhor veja.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido.

Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas ele apreciava o trabalho dos homens, chamando para eles meu olhar, com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo.

A ser que tinha dinheiro de seu, comprou um quarto de queijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear em canoa.

Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco.

As canoas eram algumas, elas todas compridas, como as de hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no fundo. Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro.

Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio. O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio.

Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estar perto do menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a meu esmo.

Saiba o senhor, o de-janeiro é de águas claras. E é rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses –

em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto, exato. Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção para o mato da beira, em pé, paredão, feito à régua regulado. – “As flores...” – ele prezou. No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo; porque se estava no mês de maio, digo – tempo de comprar arroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou. Nhambu? E

periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? Um papagaio vermelho: – “Arara for?” – ele me disse. E – quê-quê-quê? – o araçari perguntava. Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte –

assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível – o senhor represente. As roupas mesmas não tinham nódoa nem amarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele pouco falasse. Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim.

Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-janeiro, quase só um rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu pedi, ansiado.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas O menino não me olhou – porque já tinha estado me olhando, como estava. – “Para quê?” – ele simples perguntou, em descanso de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foi quem se riu, decerto de mim. Aí o menino mesmo avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. As remadas que se escutavam, do canoeiro, a gente podia contar, por duvidar se não satisfaziam termo. – “Ah, tu: tem medo não nenhum?” – ao canoeiro o menino perguntou, com tom. – “Sou barranqueiro!”

– o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. De tal o menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu também. O

chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro.

Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para sua coragem. Mas eu agüentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, desse a minhas carnes alguma coisa.

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