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Acontecendo tudo com risadas e ditos amigos – como quando com seu arreleque por-escuro uma nhaúma devoou, ou quando

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas eu pulei para apanhar um raminho de flores e quase caí comprido no chão, ou quando ouvimos um him de mula, que perto pastava. De estar folgando assim, e com o cabelo de cidadão, e a cara raspada lisa, era uma felicidadezinha que eu principiava. Desde esse dia, por animação, nunca deixei de cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no mais tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu, naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha de que me vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com muita estima. E o Reinaldo, doutras viagens, me deu outros presentes: camisa de riscado fino, lenço e par de meia, essas coisas todas. Seja, o senhor vê: até hoje sou homem tratado.

Pessoa limpa, pensa limpo. Eu acho.

Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, no rio. Ele não ia. Só, por acostumação, ele tomava banho era sozinho no escuro, me disse, no sinal da madrugada. Sempre eu sabia de tal crendice, como alguns procediam assim esquisito – os caborjudos, sujeitos de corpo-fechado. No que era verdade. Não me espantei. Somente o senhor tenha: tanto sacrifício, des-conforto de esbarrar nos garranchos, às tatas na ceguez da noite, não se diferenciando um ai dum ei, e pelos barrancos, lajes escorregadas e lama atolante, mais o receio de aranhas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas caranguejeiras e de cobras! Não, eu não. Mas o Reinaldo me instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegrias do ar em meu pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade. Cheguei a tirar a roupa. Mas então notei que estava contente demais de lavar meu corpo porque o Reinaldo mandasse, e era um prazer fofo e perturbado. “Agançagem!” – eu pensei. Destapei raivas.

Tornei a me vestir, e voltei para a casa do preto; devia de ser hora de se comer a janta e arriar a tropa para as estradas. Agora o que eu queria era ímpeto de se viajar às altas e ir muito longe. A ponto que nem queria avistar o Reinaldo.

Estou contando ao senhor, que carece de um explicado.

Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! –

nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos.

Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre. Do demo: digo? Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois.

Assim mesmo, naquele estado exaltado em que andei, concebi fundamento para um conselho: na jornada por diante, a gente tinha de deixar duma bando o rio, ir passar a Serra-da-Onça e entestar com a travessia do Jequitaí, por onde podia ter tropa de soldados; mais ajuizado não seria se enviar só um, até lá, espiar o que se desse e colher outras informações?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Titão Passos era homem ponderado em simples, achou boa a minha razão. Todos acharam. Aquela munição era de ida urgente, mas também valia mais que ouro, que sangue, se carecia de todo cuidado. Fui louvado e dito valedor, certo nas idéias. Ao senhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo – que a assoprada na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e mais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que minha opinião era só pelo desejo encoberto de que a gente pudesse ficar mais tempo ali, naquele lugar que me concedia tantos regalos. Assim um rôo de remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão séria em cima, e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres.

Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer surtiu efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o Jenolim saiu em rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com a mesma tenção, rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o Pontal da Barra, com todos os ouvidos bem abertos. E nós ficamos esperando a volta deles, cinco dias lá, com grande regozijo e repouso, na casa do preto Pedro Segundo de Rezende, que era posteiro em terras da Fazenda São Joãozinho, de um coronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tirando mel da abelha-depoucas-flores, que arma sua cera cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousados nas croas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me perguntou: – “Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos?” – “Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigo seu!” –

eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricuri retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo.

Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer.

Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito.

Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Titão Passos regulou um espanto: uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem disse, risonho bobeento: – “Bom? Um messias!...” O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era sempre tranqüilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão governandor, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal.

Talvez também seja. Anta entra n’água, se rupeia. Mas, não. Era não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava criticando, era me a mim contando logro – jigajogas.

– “Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo...”

– o Reinaldo veio dizendo. – “Vai ver que ele é o homem que existe mais valente!” Me olhou, com aqueles olhos quando doces.

E perfez: – “Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!” Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser. Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao compadre meu Quelemém. – “Do que o valor dessas palavras tem dentro”

– ele me respondeu – “não pode haver verdade maior...”

Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar meu pejo de tribulação.

Fim do bom logo vem, mas. O Acrísio retornou: pasmaceira na barra do rio, a nenhuma novidade. Retornou o Jenolim: o Jequitaí estava passável. E saímos simples com a tropa, sem menos dessossego nem mais receio, serra para cima, pelos caminhos tencionados. Daí, hora grave me veio, com três

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas léguas de marcha. Mazelas de mais pesares. E donde menos temi, no pior me vi. Titão Passos começou a me perguntar.

Titão Passos era homem liso bom; me fazia as perguntas com natureza tão honrosa, que eu não tinha ânimo de mentir, nem de me caber calado. Nem podia. De lá mais adiante, atravessando o Jequitaí, tudo ia se abrir a ser para nós todos campo de fogo e aos perigos de mortes. As turmas de cavaleiros de Zé Bebelo campeavam naquele país, caçando gente, sopitan-do, vigiando. Do povo morador, não faltava quem, desconfiando de nós, mandasse a eles envio de denúncia, pois todos queriam aproveitar a ocasião para se acabar com os jagunços, para sempre. – “Morrer, morrer, a gente sem luxo se cede...” – o Reinaldo disse. – “... Mas a munição tem de chegar em poder de loca Ramiro!” Eu podia pensar tranqüilo na minha morte por ali?

Podia pensar no Reinaldo morrendo? E o que Titão Passos queria saber era tudo que eu soubesse, a respeito de Zé Bebelo, das malasartes que ele usava em guerra, de seus aprovados costumes, suas forças e armamentos. Tudo o que eu falasse, podia ajudar. O saber de uns, a morte de outros. Para melhor pensar, fui mal-respondendo, me calando, falando o que era vasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o que eu mesmo quisesse.

Mas, traição, não.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Não. Nem era por retente de dever, por lei honesta nenhuma, ou floreado de noção. Mas eu não podia. Tudo dentro de mim não podia. Dou vendido em pecas riquezas o que eu cansei naquela hora, minhas caras deviam de estar pegando fogo. Que se eu contasse, não contasse, essas ânsias.

Eu não podia, como um bicho não pode deixar de comer a avistada comida, como uma bicha-fêmea não pode fugir deixando suas criazinhas em frente da morte. Eu devia? Não devia? Vi vago o adiante da noite, com sombras mais apresentadas. Eu, quem é que eu era? De que lado eu era? Zé Bebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria querer contar.

Falei e refalei inútil, consoante; e quer ver que Titão Passos aceitava aquilo assim? Me acreditava. Lembrei que ainda tinha, guardada estreito comigo, aquela lista, de nomes e coisas, de Zé Bebelo, num caderno. Alguma valia aquilo tinha? Não sei, sabia não. Andando, peguei, oculto, rasguei em pedacinhos, taquei tudo no arrojo dum riacho. Aquelas águas me lavavam. E, de tudo que a respeito do resto eu sabia, cacei em mim um esforço de me completo me esquecer. Depois, Titão Passos disse: –

“Você pode ser de muita ajuda. Se a gente topar com a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas zebelância, você entra de bico – fala que é um deles, que esta tropa você está levando...” Com isso, me conformei. Aos poucos, mesmo compunha uma alegria, de ser capaz de auxiliar e pôr efeito, como o justo companheiro. A que, no bando de loca Ramiro, eu havia de prestar toda a minha diligência e coragem. E

nem fazia mal que eu não relatasse a respeito de Zé Bebelo mais, porquanto o prejuízo que disso se tivesse, por ele eu também padecia e pagava. No caso, em vista de que agora eu estava também sendo um ramiro, fazia parte. De pensar isso, eu desfrutei um orgulho de alegria de glória. Mas ela durou curta.

Oi, barros de água do Jequitaí, que passaram diante de minha fraqueza.

Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: – “Tudo temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia de que você fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar imediato, por culpas de desertor...” Ouvi retardado, não pude dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia me levando sem data. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já

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