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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas principia com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo.

Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas – que de repente podia cursar por ali gente zebebela armada, me pegavam: por al, por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, sem salves, atirado para morrer com o chão na mão. Devia de me lembrar de outros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódios daqueles homens querentes de ver sangues e carnes, das maldades deles capazes, demorando vingança com toda judiação. Não pude, não pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um vapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto.

E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo: grande vão eu atravessava.

A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais de mim, de minha companhia. Por quê? Nunca falo queixa, de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: –

“Riobaldo, puxa as orelhas do teu jumento...” Mas amuado eu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não estava. Respondi somente: – “Amigo...” – e não disse nem mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.

Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha de ouro. E

conheci o que é socorro.

Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas primeiro tenho de relatar um importante ensino que recebi do compadre meu Quelemém. E o senhor depois verá que naquela minha noite eu estava adivinhando coisas, grandes idéias.

Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente realizar alcança – se tiver ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de rejeitar

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele desejo principal que serviu para animar a gente na penitência de glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma. Isso é do compadre meu Quelemém. Espécie de reza?

Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de se ter algum costume. Mas foi aquele grão de idéia que me acuculou, me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos, é que a gente abre os olhos; achei, de per mim. E

foi: que, no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por forte que fosse o vício de minha vontade. E não ia dormir, nem descansar sentado nem deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, nem conversa, o que de tudo mais prezava. Resolvi aquilo, e me alegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhas pernas. O

medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa tapera, nas Lagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons. O

que resolvi, cumpri. Fiz.

Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça alta – digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O que há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer cru o coração de uma onça-pintada. É, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem muito medo natural de onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão – e esse homem afia sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça, com muita inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O

senhor não é bom entendedor? Conto. De não pitar, me vinham uns rangidos repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo.

Agüentei. Sobejante saí caminhando, com firmes passos: bis, tris; ia e voltava. Me deu vontade de beber a da garrafa. Rosnei que não. Andei mais. Nem não tinha sono nenhum, desmenti fadiga. Reproduzi de mim outro fôlego. Deus governa grandeza.

Medo mais? Nenhum algum! Agora viesse corja de zebebelos ou tropa de meganhas, e me achavam. Me achavam, ah, bastantemente. Eu aceitava qualquer vuvu de guerra, e ia em cima, enorme sangue, ferro por ferro. Até queria que viessem, duma vez, pelo definitivo. Aí, quando os passos escutei, vi: era o Reinaldo, que vindo. Ele queria direto, comigo se conferir.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Eu não podia tão depressa fechar meu coração a ele. Sabia disso. E ele curtia um engano: pensou que eu estava amofinado, e eu não estava. O que era sisudez de meu fogo de pessoa, ele tomou por mãmolência. Queria me trazer consolo? – “Riobaldo, amigo...” – me disse. Eu estava respirando muito forte, com pouca paciência para o trivial; pelo tanto respondi alguma palavra só. Ele, em hora comum, com muito menos que isso a gente marfava. Na vez, não se ofendeu. – “Riobaldo, não calculei que você era genista...” – ainda gracejou. Dei a nenhuma resposta.

Momento calados ficamos, se ouvia o corrute dos animais, que pastavam à bruta no capim alto. O Reinaldo se chegou para perto de mim. Quanto mais eu tinha mostrado a ele a minha dureza, mais amistoso ele parecia; maldando, isso pensei. Acho que olhei para ele com que olhos. Isso ele não via, não notava. Ah, ele me queria-bem, digo ao senhor.

Mas, graças-a-deus, o que ele falou foi com a sucinta voz:

– “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que esconder mais não posso... Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ele falava aquilo sem rompante e sem entonos, mais antes com pressa, quem sabe se com tico de pesar e vergonhosa suspensão.

– “Você era menino, eu era menino... Atravessamos o rio na canoa... Nos topamos naquele porto. Desde aquele dia é que somos amigos.” Que era, eu confirmei. E ouvi:

– “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim...

Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...”

Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em minha mente as palavras, modo de me acostumar com aquilo. E

ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos.

Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos

– logo eu disse: – “Diadorim... Diadorim!” com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida: eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam. Diadorim.

Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali, para o Canabrava e o Barra.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Aquele dia fora meu, me pertencia. Íamos por um plaino de varjas; lua lá vinha. Alimpo de lua. Vizinhança do sertão – esse Alto-Norte brabo começava. – Estes rios têm de correr bem! –

eu de mim dei. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada.

Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele – foi como dissesse notícia do que em terras longes se passava. Era um nome, ver o quê. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o ele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar.

Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela-alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão.

Hoje em dia, verso isso: emendo e comparo. Todo amor não é uma espécie de comparação? E como é que o amor desponta. Minha Otacília, vou dizer. Bem que eu conheci

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Otacília foi tempos depois; depois se deu a selvagem desgraça, conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após. Mas o primeiro encontro meu com ela, desde já conto, ainda que esteja contando antes da ocasião. Agora não é que tudo está me subindo mais forte na lembrança? Pois foi. Assim que desta banda de cá a gente tinha padecido toda resma de reveses; e que soubemos que os judas também tinham atravessado o São Francisco; então nós passamos, viemos procurar o poder de Medeiro Vaz, única esperança que restava. Nos gerais. Ah, buriti cresce e merece é nos gerais! Eu vinha com Diadorim, com Alaripe e com João Vaqueiro mas Jesualdo, e o Fafafa. Aos Buritis-Altos, digo ao senhor – vereda acima – até numa Fazenda Santa Catarina se chegar. A gente tinha ciência de que o dono era favorável do nosso lado, lá se devia de esperar por um recado. Fomos chegando de tardinha, noitinha já era, noite, noite fechada. Mas o dono não estava, não, só ia vir no seguinte, e sor Amadeu o graça dele era. Quem acudiu e falou foi um velhozinho, já santificado de velho, só se apareceu no parapeito da varanda – parece que estava receoso de nossa forma; não solicitou de se subir, nem mandou dar nada de comer. mas disse licença d’a gente dormir na rebaixa do engenho. Avô de Otacília esse velhinho era, se chamava Nhô Vô Anselmo. Mas, em tanto que ele falava, e mesmo com a confusão e os latidos de muitos cachorros, eu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas divulguei, qual que uma luz de candeia mal deixava, a doçura de uma moça, no enquadro da janela, lá dentro. Moça de carinha redonda, entre compridos cabelos. E, o que mais foi, foi um sorriso. Isso chegasse? Às vezes chega, às vezes. Artes que morte e amor têm paragens demarcadas. No escuro. Mas senti: me senti. Águas para fazerem minha sede. Que jurei em mim: a Nossa Senhora um dia em sonho ou sombra me aparecesse, podia ser assim – aquela cabecinha, figurinha de rosto, em cima de alguma curva no ar, que não se via. Ah, a mocidade da gente reverte em pé o impossível de qualquer coisa! Otacília. O prêmio feito esse eu merecia?

Diadorim-dirá o senhor: então, eu não notei viciice no modo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Não, que não –

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