Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é assim.
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da tropa de burros, adiante, na boca da ponte.
Não tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez mulas, com os cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados, tafulhados
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com rama de algodão: afora o geme-geme das cangalhas, não faziam nenhum rumor. Guiamos os tropeiros também para o Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou, com Joca Ramiro, Ricardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxe outra vez para casa. O dia já estava clareando completo. Meu coração restava cheio de coisas movimentadas.
Não vi mais o acampo deles, as esporas tilintim. Não pude.
Padrinho Selorico Mendes mandou que eu fosse no O-Cocho, buscar um homem chamado Rozendo Pio, esse homem – meu padrinho me disse – rastreava. E era para ele vir, debaixo de todos os segredos, tapejar o bando de Joca Ramiro por bons trilhos e atalhos, na Serra das Trinta Voltas, modo de caber em duas noites, sem perigo maior, o que, se não, durasse seis ou sete.
Sendo assim, só eu mesmo merecia confiança de ir. Fui, com desgosto. Três léguas, três léguas e meia longe. Mas eu tinha de levar um cavalo adestro, para o homem. E esse Rozendo Pio era tratantaz e tolo. Demorou muito, com desculpa de arranjos. No caminho, na vinda, ele nem sabia de nada, de jagunços, quase não conversava, não quis dar demonstração. Nem fazia prazer naquilo. Quando chegamos, era o anoitecido, o bando estava pronto para sair. Se separavam em pequenos golpes. Meu padrinho tinha mandado amarrar os cachorros todos da fazenda.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Se foram. Achei mesmo que tudo tinha perdido a graça, o de se ver.
Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços.
Dito que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos iguais não nascem assim – dono de glórias! Aquela turma de cabras, tivesse sorte, podia impor caráter ao Governo. Meu padrinho levara aquele dia todo no meio deles. Contava: o cuidado nos arranjos, as coisas todas regradas, aquele dormir de ordem, aquela autoridade enorme no entremeamento. Nem nada faltava. As sacas de farinha, tantas e tantas arrobas de carne-de-sol, a munição bem zelada, caixote com pães de sabão para cada um lavar a roupa e o corpo. Até tinham um mestre-ferrador, com sua tendinha e os pertences: uma bigorna e as tenazes, fole de mão, ferramenta exata; e capanga de alveitar, com vários sortidos flames de sangrar cavalos adoecidos. E as mais coisas meu padrinho descrevia com muito agrado, de que tinha ouvido sincera narração. As lutas dos joca-ramiros, os barulhos, as manhas traçadas para se ganhar em combate, maço de estórias de toda raça de artes e estratagemas. De ouvir meu padrinho contar aquilo, se comprazendo sem singeleza, começava a dar em mim um enjôo. Parecia que ele queria se emprestar a si as façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a ele, Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficava mais sendo. Eu achava. Num lugar parado, assim, na roça, carece de a gente de vez em quando ir alterando os assuntos.
Não estou caçando desculpa para meus errados, não, o senhor reflita. O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim.
Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Aire, me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não cantava, porque nunca tive entôo de voz, e meus beiços não dão para saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, e todo o mundo admirava, muito recitados repetidos. Agora, tiro sua atenção para um ponto: e ouvindo o senhor concordará com o que, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi – que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?
Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na lordeza. No São Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer querendo. E, de trabalhar seguido, eu nem carecia.
Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava; mas não me louvava. Uma coisa ele não tolerava, e era só: que alguém indagasse justo quanto era o dinheiro que ele tinha. Com isso eu nunca somei, não sou especula. Eu vivia com o meu bom corpo.
Alguém há de achar algum regime melhor?
Mas, um dia – de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem – me disseram que não era àtoa que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes.
Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de mim o tonto houve – o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto jeito, eu daquilo já sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos, ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse?
Ah, eu não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; chegava. Não desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas armas, selei um cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha, conduzi um naco de carne, dois punhados de farinha no bornal. Achasse
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas algum dinheiro à mão, pegava; disso eu não tinha nenhum escrúpulo. Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim.
Razão por que fiz? Sei ou não sei. De as, eu pensava claro, acho que de bês não pensei não. Eu queria o ferver. Quase mesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vicio dum ruim prazer. Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só uma espécie de despique a dentro, o vexame que me inçava não me dava rumo para continuação. Único reger era me empinar e assoprar em esta minha cabeça, aí a confusão e desordem e altos desesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. Não ia para a casa de Nhô Maroto. Ante antes ia para o seo Assis Wababa –
aquela hora eu queria só gente estranha, muito estrangeira, estrangeira inteira! Só fosse um pouco para ver a Rosa’uarda, essa assim eu amava? Ah, não. Gostasse da Rosa’ uarda, mais aí nas delícias dela minha idéia não podendo se firmar – porque aumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para a escola de Mestre Lucas. A lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava um senhor chamado Dodó Meireles, que tinha uma filha chamada Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu achava consolo em que ela me visse – que soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dado revolta
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas contra meu padrinho, saíra de casa, aos gritos, danado no animal, pelo cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas eu tinha de dar uma explicação. Eu não gostava daquela Miosótis, ela era uma bobinhã, no São Gregório nunca tinha pensado nela; gostava era de Rosa’uarda. Mas Nhô Maroto havia de logo saber que eu tivesse chegado no Curralim, e meu padrinho ia ter o pronto aviso. Mandava alguém me buscar.
Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu sabia: o que eu estava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me pedisse para voltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés se ajoelhava.
E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o que era que eu ia fazer, caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me repartir no miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis, então, cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas nos bobos olhos.
Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei alto que seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo avesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogo de misericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sosseguei as esporas. Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causa de minha vida, quando entramos no Curralinho.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante.
No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresa me declararam: a de que a Rosa’uarda agora estava sendo noiva, para se casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos derradeiros meses para lá vindo. Assumi, em trela, tristeza e alívio
– aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais. Nublo em que me vi, mas me governei: trancei as pernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim, acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços; assim fossem cuidar que essa minha viagem era por tramar importante encargo para o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor. Seo Assis Wababa se engordava concordando, trouxe canjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei – na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.
Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse – seo Emílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo Curralinho, ele já era meu conhecido. Tresdobrado homem.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Sendo que entendia tudo de manejar com armas, mas viajava sem cano nenhum; dizia: – “Níquites! Desarmado eu completo, eu assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no sertão.” Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar.