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Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber, constante comer. – “Comeu, lobo?”E vozear tantas asneiras, mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, um disse:

– “Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados pesares...” Desentendi, mediante meu querer. Mas não me adiantou. Dai, persistentemente, essa história me remoía, esse nome de um Leopoldo; Tomava por ofensa a mim, que Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo companheiro. Até que, vai, cresci naquela idéia: que o que estava fazendo falta era uma mulher.

E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. – “Saindo por aí”, – dizia um – “qualquer uma que seja, não me escapole!” Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. – “Mulher é gente tão infeliz...” – me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando estavam precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam. Deus me livrou de endurecer nesses costumes perpétuos. A primeira, que foi, bonita moça, eu estava com ela

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas somente. Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça – fechados os olhos –

não bulia; não fosse o coração dela rebater no meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto, de repente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres, constituído milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levava essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova, foi uma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou fria estendida, para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eu nos medonhos fosse – e, o senhor crê? – a mocinha me agüentava era num rezar, tempos além. Às almas fugi de lá, larguei com ela o dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma minha recompensa. O que eu queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu ser. Feito com a Rosa ‘uarda, sempre formosa, a filha de Assis Wababa, sonhos meus, turcamente; e que a qual, não lhe disse: o pai dela, que era forte negociante, em todo tempo nanja que não desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Fonfredo – que cantava todas as rezas de padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfredo, desse já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito “o Caridoso”, queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catocho, mulato claro – era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minas-novense, com mania de aforrar dinheiro. O Diolo, preto de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para que que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo...

Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é demônio de ruim, ele ria de não querer ser, capaz até de nessa raiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas no rabo da palavra. Ezirino matou um companheiro, que Batatinha se chamava, o pobre dum cafuz magrelo, só que tinha o danado defeito de contrariar qualquer coisa que a gente falava.

Ezirino caiu no mundo. Daí, começou voz que ele tinha fugido para se bandear com os zé-bebelos, pago por sua traição, e que Batatinha somente morreu porque disso sabia. Todo o mundo andava encrespo, forjicavam muita cilada e enredos de desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais a coberto, em distância: obra de sete léguas, para a parte do poente. Muito vi que não estávamos fazendo isso por escapulir; mas que o Hermógenes, Titão Passos e João Goanhá, antes acharam de combinar aquilo, em suas conversas – era o arrumo para melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, lá chegaram, com satisfação de todos, dez homens, a Só Candelário pertencidos.

Traziam cargueiros com mais sal, bom café e uma barrica de bacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o Luzié, alagoano de Alagoas. Nesse dia, eu saí, com esquadra, fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos, andamos mais de três léguas e tanto, no meio da noite retornamos.

De manhã cedo, eu soube: tinham até dançado, aquela véspera. – “Diadorim, você dança?” – logo, perguntei. –

“Dança? Aquilo é pé de salão...” – quem respondeu foi o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Garanço, o de olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrou um enjôo. O Garanço, era um mocorongo mermado, com estúrdias feições, e pessoa muito agradável de seu natural. Ele tinha idéias, às vezes parecia criança pequena. Punha nome em suas armas: o facão era torturum, o revólver rouxinol, a clavina era berra-bode.

Com ele, a gente ria, sempremente. Mais o Garanço dava de procurar a companhia nossa, minha e de Diadorim; aquele tempo ele vinha costumeiro para perto. Às vezes, como naquilo, ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não dizia nada, estava deitado de costas, num pelego, com a cabeça num feixe de capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia – Diadorim menos gostava de rede. O Garanço era sanfranciscano, dum lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente escutasse ele recontar compridas passagens de sua vida. Aquilo aborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos violeiros, que tocavam sentimento geral. Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele, guapo tão aposto – surgido sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre. De repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo dito pelego, na cama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara posta no próprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com o violeiro

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não presenciava nada, nem escutava possuído – fiquei sonhejando: o ir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório? A bem, no São Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do poço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens. O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. As vezes não é fácil. Fé que não é.

Mire veja: naqueles dias, na ocasião, devem de ter acontecido coisas meio importantes, que eu não notava, não surpreendi em mim. Mesmo hoje não atino com o que foram.

Mas, no justo momento, me lembrei em madrugada daquele nome: de Siruiz. Refiro que perguntei ao Garanço, por aquele rapaz Siruiz, que cantava cousas que a sombra delas em meu coração decerto já estava. O que eu queria saber não era próprio do Siruiz, mas da moça virgem, moça branca, perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um igual. Mas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas o Garanço já tinha respondido. – “Eh, eh, ô... O Siruiz já morreu.

Morreu morto no tiroteio, entre o Morcego e o Suaçuapara, passado para cá o Pacuí...” Do choque com que ouvi essa confirmação de notícia, fui arriando para um desânimo. Como se assim ele tivesse falado: “Siruiz? Mas não foram vocês mesmos que mataram?...” Eu, não. Nessa vez, eu tinha restado longe por fora, na PedraBranca, não vi combate. Como era que eu podia?

O Garanço tomava rapé. Era um sujeito de intenções muito parvas. Perguntou se o Siruiz não seria meu amigo, meu parente.

– “Quem sabe se era...” – eu respondi, de toleima. O Garanço, vi que não gostou. Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos. Nem eu quis indagar o mais, certo estava de que ele Garanço não sabia nada do que tivesse valor. Mas eu guardava triste de cor a canção recantada. E Siruiz tinha morrido.

Então me instruíram na outra, que era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida:

“Olererêêê, baiana... Eu ia e

não vou mais: Eu faço

que vou lá dentro, oh baiana, e voltodo meio p’ra trás...”

O senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de ruindade, lá como quem diz. Sou ruim não, sou homem de gostar

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dos outros, quando não me aperreiam; sou de tolerar. Não tenho a caixeta da raiva aberta. Rixava com nenhum, ali, aceitava o regime, na miudez das normas. Vai, daí, comigo erraram. Um, errou. Um pai-jagunço chamado Antenor, acho que era coração

– de-jesusense, começou a temperar conversa, sagaz de fiúza, notei. Ele era homem chegado ao Hermógenes – se sabia dessa parte. De diz em diz, rodeava a questão. Queria saber que apreço eu tinha por loca Ramiro, por Titão Passos, os outros todos. Se eu conhecia Só Candelário, que estava por chegar? O giro dos assuntos – ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar, vinha querendo deixar em mim uma má vazante: me largar em dúvida.

Não era? Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre louvando e vivando Joca Ramiro, acabou por me dar a entender, curtamente, o em conseguinte: que Joca Ramiro talvez fazia mal em estar tanto tempo por longe, alguns de bofe ruim já calculavam que ele estivesse abandonando seu pessoal, em horas de tanta guerra; que Joca Ramiro era rico, dono de muitas posses em terras, e se arranchava passando bem em casas de grandes fazendeiros e políticos, deles recebia dinheiro de munição e paga: seô Sul de Oliveira, coronel Caetano Cordeiro, doutor Mirabô de Melo. Que era que eu achava?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Eu escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para achar nenhuma coisa. Não tinha nascido no ontem, cedo tomei experiência de homens por homens. Disse só que decerto Joca Ramiro estava formando gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes, em Titão Passos, João Goanhá – fortes no fato valor e na lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei. Com isso, aquele Antenor concordou. A bem dizer, aprovou o quanto eu disse. Mas realçou mais altamente a fama do Hermógenes, e do Ricardão, também – esses dois seriam os chefes de encher a mão, em paz regalada mas por igual nos combates. Esse sujeito Antenor sabia coçar queixo de cobra e semear sal em roças verdes. Vulto perigoso, nas ações – o Garanço me preveniu, com a boa noção vinda de sua redondice de atinar. Ações? O

que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo. Aquele Antenor já tinha depositado em mim o anúvio de uma má idéia: disidéia, a que por minhas costas logo escorreu, traiçoeirinha como um rabo de gota de orvalho. Que explicação dou ao senhor? Acreditar, no que ele tinha suso dito, não acreditei. Mas, em mim, para mim, aquilo tudo era – era assim como um lugar com mau-cheiro, no campo, uma árvore: lugar fedido, onde é que alguma jaratataca acuou, por se defender

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas do latido dos cachorros. E grande aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real, do que do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só para se ter consolo legal, depois que o castigo passou e veio.

Aviso? Rompe, ferro!

Cacei Diadorim. Mas eu estreava umas ânsias. Como fosse, falei, do novo e do velho; mal foi que falei: em zanga –

desrazoadamente – e de primeira entrada. Acho que, por via disso, Diadorim não deu a devida estimação às minhas palavras.

Alheio, eh. Só ojerizado em estilos ele esteve, um raio de momento, foi de ouvir que alguém pudesse duvidar do proceder de loca Ramiro: loca Ramiro era um imperador em três alturas!

loca Ramiro sabia o se ser, governava; nem o nome dele não podia à toa se babujar. E aqueles outros: o Hermógenes, Ricardão? Sem Joca Ramiro, eles num átimo se desaprumavam, deste mundo desapareciam – valiam o que pulga pula. O

Hermógenes? Certo, um bom jagunço, cabo-de-turma; mas desmerecido de situação política, sem tino nem prosápia. E o Ricardão, rico, dono de fazendas, somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro e ajuntando. Diadorim, do Ricardão

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas era que ele gostava menos: – “Ele é bruto comercial...” – disse, e fechou a boca forte, feito fosse cuspir.

Eu então disse, pelo conseguinte: – “A bom e bem, Diadorim. Mas, se é ou se não é, por que é que não vamos levar informação sutil a loca Ramiro, para o enfim?” Aí, refalei muito, ao tanto que escondi minha raiva. Quem sabe Joca Ramiro, na lei da caminhação, não estava esquecido de conhecer os homens, deixando de farear o mudar do tempo? Viesse, Joca Ramiro podia detalhar o podre do são, recontar seus brabos entre as mãos e os dedos. Podia, devia de mandar embora aquele monstro do Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse – eh, uai: se matava!... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi que com um espanto reprovador, não me achasse capaz de estipular tanta maldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? – ele disse? Nem cobra serepente malina não é. Nasci devagar. Sou é muito cauteloso.

Are sens