Os que enviei, deixei de numerar, por causa de caridade. Ai deles.
Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que é em alegre mal, feito numa caçada?
Descansar? Quem disse, não foi ouvido. – “Vou lá deixar essa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, minha gente!
Vamos neles!” – Zé Bebelo se frigia. Mas o próprio pessoal de João Concliz tinha segurado mão nos cavalos daqueles. –
“Toquemos na mão do norte: lá a cara do chão é minha mais...”
Não, o caminho era da banda contrária. Tínhamos de cair em riba do grosso da judadas. Por resfriados e atalhos, mesmo com aquela cavalhada adestra, tocamos, tocamos. Estrada capaz de quatro, lado a lado. No Oi-Mãe. Lá tem um lajeiro – largo: onde grandes pedras do fundo do chão vêm à flor. Chegamos de sobremão, vagarosinho. Zé Bebelo recomendava, feito rondando quarto de doente. Ele cheirava até o ar. Sonso parecia um gato.
Se vendo que, no inteiro mesmo de sua cabeça, ele antes tudo traçava e guerreava. Seja por um exemplo: havia uma cava grande, o inimigo estava emboscado dos dois lados, nos socavões, nas paredes. Como era que Zé Bebelo já sabia?
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Orçando longe volta, João Concliz levou seus homens muito adiante de lá, na borda do campo, de recacha. Dado tempo, então, nosso pelotão rastejou para os altos, até chega estávamos por cima dos beiços da cava. Ah e aí o Fafafa veio vindo, descuidado à mostra, com seus cavaleiros – surgiam inocentemente, feito veados para se matar... Mas – há! – então por de riba da cava desfechamos demos urros e o rifleio, transcruzando nos inferiores: – “Lá vai obra!...” Hê-hê! Deu de abelhas de pau oco: os das socavas entornaram o sangue-frio, demais se assustaram, correndo em fuga maior debaixo de tiros, xingos, às pragas. João Condiz, pois é, o senhor sabe... Urubus puderam voar cererém – uns urubus declarados.
Mas daí voltamos, desatravessando outra vez o Soninho, até onde estava a nossa mulada, com munição e o mais. Mesmo viemos negaceando de recuar. Assim era pena, mas carecíamos de flautear desse jeito, sustância nossa não dava para se acabar com aqueles judas de uma vez. Sempre, sempre, para enganar no que vissem, Zé Bebelo variava de se viajar uma hora quase todos juntos, outra hora despedidos espalhados. Ainda, por suma vantagem disso, demos um tiroteio ganho, na fazenda São Serafim, dos diabos!
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar. Tem uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas Tortas-veredas mortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares assim são simples – dão nenhum aviso. Agora: quando passei por lá, minha mãe não tinha rezado – por mim naquele momento?
Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor ouvindo seguinte, me entende. O
Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes.
Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em toda a parte é desse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muito sangue.
Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim.
Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho... O senhor não me pergunte nada.
Coisas dessas não se perguntam bem.
Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo.
Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deo-gratias; e o troco.
Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava falando: – “A pátria não pode nada com a velhice...” Discordo.
A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas – ele dizia: aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela.
Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.
Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Rio baldo que está com
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: VeredasMedeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era um homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento.
Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal, no São Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas e vindo do Morro dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O
que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!
Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto.
Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O
que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.
Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.
Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão.