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O mato e o campo – como dois é um par. Veio e foi, figurava, tomava a opinião da gente: – “Com dez homens, naquela altura, e outros dez espalhados na vertente, se podia impedir a passagem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de duzentos cavaleiros, pelo resfriado... Com outros alguns, dando a retaguarda, então...” Nesfartes, só nisso ele pensava, quase que.

Sendo que expedia, sobre hora, alguém adiante, se informar do meximento dos Judas, trazer notícias vivas. E, homem feliz, feito Zé Bebelo naquele tempo, afirmo ao senhor, nunca não vi.

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. O demônio diz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera... Diadorím alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-meviam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! – linda cor...

Dando o dia, de repente, Zé Bebelo determinou que tudo e tudo fosse pronto, para uma remarcha em exercícios, como geral.

Só por festa. Ao que os burrinhos comiam amadrinhados, em bom pasto: – “Menininhos, responsabilidade de cangalhas em vocês, carregando a nossa munição!” – Zé Bebelo mandou. Mas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas montado, declarou: – “Meu nome d’ora por diante vai ser ah-oh-ah o de Zé Bebelo Vaz Ramiro! Como confiança só tenho em vocês, companheiros, meus amigos: zé-bebelos! A vez chegou: vamos em guerra. Vamos, vamos, rebentar com aquela cambada de patifes!...” Saímos, solertes entes.

Para isso, a lua não era boa. Quem põe praça de cavalhadas, por desbarranco de estradas lamentas, desmancho empapado de chão, a chuva ainda enxaguando? Convinha esperar regras d’água. – “O Rio Paracatu está cbeio...” alguém disse. Mas Zé Bebelo atalhou: – “O São Francisco é maior...”

Com ele tudo era assim, extravagável; e não queria conversas de cutilquê. Rompemos. Melava de chover baixo, mimelava. Até o derradeiro do momento, parecia que íamos atravessar o Paracatu. Não atravessamos. Tudo aquele homem retinha estudado. Daí, distribuiu as patrulhas. O drongo dele, viemos, pela beira, sempre o Paracatu à mão esquerda. Trovejou, de perturbar. Ele disse: – “Melhor, dou surpresa... Só uma boa surpresa é que rende. Quero é atacar!”. A gente ia para o Buriti-Pintado. A lá, consta de dez léguas, doze, – “Na hora, cada um deve de ver só um algum judas de cada vez, mirar bem e atirar.

O resto maior é com Deus...” – já vai que falava. – “Para um trabalho que se quer, sempre a ferramenta se tem. Só com estes

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cavalos, só à ligeireza, de lugar para lugar, para a frente e para trás. Sei, mas o principal dos combates vamos dar é bem a pé...”

Na beira do rio Soninho, descansamos. Animais de carga, a ponta de mulas, ficaram botados escondidos, numa bocaina na balsa. Só três homens tomavam conta. – “Eu é que escolho a hora e o lugar de investir...” – Zé Bebelo disse. E, num lugar de remanso, passamos o rio Soninho, no escuro, sem ensolvar, bala em boca. De manhã, de três lados, demos fogo. Aí Zé Bebelo tinha meditado tudo como um ato, de desenho. Primeiro, João Concliz avançou, com seus quinze, iam fazendo de conta que desprevenidos. Quando os outros vieram, nós todos já estávamos bem amoitados, em pontos bons. Duma banda, então, o Fafafa recruzou, seus cavaleiros: que estavam muito juntos, embolados, do modo por que um bando de cavaleiros ou cavalos dá ar de ser muito maior do que no real é. Todos cavalos ruços ou baios – cor clara também aumenta muito a visão do tamanho deles. Ah, e gritavam. Assaz os judas atiravam mal, discordados, nadinha nem. Aí, de poleiro pego prévio, abrimos nossa calamidade neles. Pessoal do Hermógenes... Não se disse guavai!

Supetume! Só bala de aço. – “Dou duelo!... – Ei, tibes...” Só o quanto de se quebrar galho e rasgar roupagem. Um judas correu errado, do lado onde o Jiribibe estava: triste daquele. – “Ouh!” –

foi o que ele fez de contrição perfeita. Outro levantou o corpo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um pouco demais. – “Tu! Tu pensa que tem Deus-e-meio?!” –

Zé Bebelo disse, depois de derrubar o tal, com um tiro de nhambu, baixo. Outro fugia esperto. – “Tem talento nos pés...”

Os que enviei, deixei de numerar, por causa de caridade. Ai deles.

Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que é em alegre mal, feito numa caçada?

Descansar? Quem disse, não foi ouvido. – “Vou lá deixar essa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, minha gente!

Vamos neles!” – Zé Bebelo se frigia. Mas o próprio pessoal de João Concliz tinha segurado mão nos cavalos daqueles. –

“Toquemos na mão do norte: lá a cara do chão é minha mais...”

Não, o caminho era da banda contrária. Tínhamos de cair em riba do grosso da judadas. Por resfriados e atalhos, mesmo com aquela cavalhada adestra, tocamos, tocamos. Estrada capaz de quatro, lado a lado. No Oi-Mãe. Lá tem um lajeiro – largo: onde grandes pedras do fundo do chão vêm à flor. Chegamos de sobremão, vagarosinho. Zé Bebelo recomendava, feito rondando quarto de doente. Ele cheirava até o ar. Sonso parecia um gato.

Se vendo que, no inteiro mesmo de sua cabeça, ele antes tudo traçava e guerreava. Seja por um exemplo: havia uma cava grande, o inimigo estava emboscado dos dois lados, nos socavões, nas paredes. Como era que Zé Bebelo já sabia?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Orçando longe volta, João Concliz levou seus homens muito adiante de lá, na borda do campo, de recacha. Dado tempo, então, nosso pelotão rastejou para os altos, até chega estávamos por cima dos beiços da cava. Ah e aí o Fafafa veio vindo, descuidado à mostra, com seus cavaleiros – surgiam inocentemente, feito veados para se matar... Mas – há! – então por de riba da cava desfechamos demos urros e o rifleio, transcruzando nos inferiores: – “Lá vai obra!...” Hê-hê! Deu de abelhas de pau oco: os das socavas entornaram o sangue-frio, demais se assustaram, correndo em fuga maior debaixo de tiros, xingos, às pragas. João Condiz, pois é, o senhor sabe... Urubus puderam voar cererém – uns urubus declarados.

Mas daí voltamos, desatravessando outra vez o Soninho, até onde estava a nossa mulada, com munição e o mais. Mesmo viemos negaceando de recuar. Assim era pena, mas carecíamos de flautear desse jeito, sustância nossa não dava para se acabar com aqueles judas de uma vez. Sempre, sempre, para enganar no que vissem, Zé Bebelo variava de se viajar uma hora quase todos juntos, outra hora despedidos espalhados. Ainda, por suma vantagem disso, demos um tiroteio ganho, na fazenda São Serafim, dos diabos!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar. Tem uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas Tortas-veredas mortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares assim são simples – dão nenhum aviso. Agora: quando passei por lá, minha mãe não tinha rezado – por mim naquele momento?

Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor ouvindo seguinte, me entende. O

Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes.

Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em toda a parte é desse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muito sangue.

Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim.

Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho... O senhor não me pergunte nada.

Coisas dessas não se perguntam bem.

Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo.

Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deo-gratias; e o troco.

Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava falando: – “A pátria não pode nada com a velhice...” Discordo.

A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas – ele dizia: aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela.

Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.

Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.

Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Rio baldo que está com

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