Todos estavam lá, os brabos, me olhantes – tantas meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras – grão e grão –
era como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando.
Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas capacidades. A desgraça, de João Goanhá não ter vindo! Rentemente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Engoli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse:
– “Não posso... Não sirvo...”
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– “Mano velho, Riobaldo, tu pode!”
Tive testa. Pensei um nome feio. O que achassem, achassem! – mas ninguém ia manusear meu ser, para brincadeiras...
– “Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia...” – Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida. Onde é que os outros, roda-a-roda, denotavam assentimento. – “Tatarana! Tatarana!...” – uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha.
Temi. Terçava o grave. Assim, Diadorim dispunha do direito de fazer aquilo comigo? Eu, que sou eu, bati o pé:
– “Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens...”
Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão.
Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços –
quando um perigo poja? – sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre, neste vale de lágrimas. Tudo rosna. Entremeio, Diadorim se
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas maisfez, avançando passo. Deixou de me medir, vigiou o ar de todos. Aí ele era mestre nisso, de astuto se certificar só com um rabeio ligeiro de mirada – tinha gateza para contador de gado. E
muito disse:
– “A pois, então, eu tomo a chefia. O melhor não sou, oxente, mas porfio no que quero e prezo, conforme vocês todos também. A regra de Medeiro Vaz tem de prosseguir, com tenção! Mas, se algum achar que não acha, o justo, a gente isto decide a ponta d’armas...”
Hê, mandacaru! Oi, Diadorim belo feroz! Ah, ele conhecia os caminhares. Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale... Muitos, ali, haviam de querer morrer por ser chefes – mas não tinham conseguido nem tempo de se firmar quente nas idéias. E os outros estimaram e louvaram: –
“Reinaldo! O Reinaldo!” – foi o aprovo deles. Ah.
Num nu, nisto, nesse repente, desinterno de mim um nego forte se saltou! Não, Diadorim, não. Nunca que eu podia consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo, e concebia por ele a vexável afeição que me estragava, feito um mau amor oculto – por mesmo isso, nimpes nada, era que eu não podia aceitar aquela transformação: negócio de para sempre
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas receber mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe, nhem, hem? Nulo que eu ia estuchar. Não, hem, clamei – que como um sino desbadala:
– “Discordo.”
Todos me olhassem? Não vi, não tremi. Visivo só vi Diadorim – resumo do aspecto e esboço dele para movimentos: as mãos e os olhos; de reguarda. Como em relance corri cálculo, de quantos tiros eu tinha para à queima-bucha dar – e uma balazinha, primeira, botada na agulha da automática – ah, eu estava com milho no surrão! De devagar, os companheiros, os outros, não se buliram, tanto esperavam; decerto que saldavam antipatia de mim, repugnados por eu estar seguidamente atrapalhando as decisões, achassem que eu agora não tinha mais direito de parecer, pois a chefia própria eu enjeitara. Quem sabe, será se praziam no poder ver nós dois, Diadorim comigo – que antes como irmãos, até ali – a gente se estraçalhar nas facas?
Torci vontade de matar alguém, para pacificar minha aflição; alguém, algum – Diadorim não – digo. Decerto isso em mim eles perceberam. Os calados. Só o Sesfredo, inesperado assim, disse um também: – “Discordo!” Por me estimar, ele me secundava. E o Alaripe, séria pessoa: – “Tem de que. Deixa o Riobaldo razoar...” Endireitei os chifres. Chapei:
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– “Vejo, Marcelino Pampa é quem tem de comandar.
Mediante que é o mais velho, e, demais de mais velho, valente, e consabido de ajuizado!” Cara de Marcelino Pampa ficou enorme.
Do que constei dos outros, concordantes, estabeleci que eu tinha acertado solerte – dei na barra! Mas, Diadorim? De olhos os olhos agarrados: nós dois. Asneira, eu naquela hora supria suscitar alto meu maior bem-querer por Diadorim; mesmo, mesmo, assim mesmo, eu arcava em cru com o desafio, desde que ele brabasse, desde que ele puxasse. Tempo instante, que empurrou morros para passar... Afinal, aí, Diadorim abaixou as vistas. Pude mais do que ele! Se riu, depois de mim. Sempre sendo que falou, firme:
– “Com gosto. Melhor do que Marcelino Pampa não tem nenhum. Não ambicionei poderes...”
Falou como corajoso. E:
– “Tresdito que é a vez de se estar contornados, unidos sem porfiar...” – o Alaripe inteirou.
Amém, todos, voz a voz, aprovavam. Marcelino Pampa então principiou, falou assim:
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– “Aceito, por precisão nossa, o que obrigação minha é.
Até enquanto não vem algum dos certos, de realce maior: João Goanhá, Alípio Mota, Titão Passos... A tanto, careço do bom conselho de todos que tiverem, segura fiança. Assentes que vamos...”
Sobre mais disse, sem importância, sem noção; pois Marcelino Pampa possuía talentos minguados. Somente pensei que ele estava pondo um peso no lombo, por sacrifício. Ao que, em melhores tempos, aprazia bem capitanear; mas, agora aquela ocasião, a gente por baixos, e essas misérias, qualquer um não havia de desgostar de responsabilidade? Ã, aí observei: como Marcelino Pampa desde o instante expunha outro ar de ser, a sisuda extravagância, soberbo satisfeito! Ser chefe – por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores.