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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Paz e saúde, chefe! Como passou?” – “Como passou, mano?”

Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em mim: – “Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar...”

De nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum se esquecia.

Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso.

Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para trás.

– “Vim de vez!” – ele disse; disse desafiando, quase.

– “Em boa veio, chefe! É o que todos aqui representamos...” – Marcelino Pampa respondeu.

– “A pois. Salve Medeiro Vaz!...”

– “Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso...”

– “Aqui soube. Lux eterna...” – e Zé Bebelo tirou o chapéu e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, que a gente até se comoveu. Depois, disse:

– “Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a vida em outro tempo me salvou de morte... E liquidar com esses dois bandidos, que desonram o nome da Pátria e este sertão nacional! Filhos da égua...” – e ele estava com a raiva tanta, que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tudo quanto falava ficava sendo verdade. – “Pois, então, estamos irmãos... E esses homens?”

Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte:

– “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...” Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas armas.

Vez de Marcelino Pampa dizer:

– “Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos.”

– “Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.”

Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas.

Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens...” Com coragem falou, como olhou para a gente outra vez.

– “Acordo!” – eu disse, Diadorim disse, João Concliz disse; todos falaram: – “Acordo!”

Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até que esperava mesmo aquele voto. – “De todo poder? Todo o mundo lealda?” – ainda perguntou, ringindo seriedade.

Confirmamos. Então ele quase se aprumou nas pontas dos pés, e nos chamou: – “Ao redor de mim, meus filhos. Tomo posse!”

Podia-se rir. Ninguém ria. A gente em redor dele, misturando em meio nosso os cinco homens do Urucuia. Adiante: – “Pois estamos. É o duro diverso, meu povo. Mas os assassinos de Joca Ramiro vão pagar, com seiscentos-setecentos!...” – ele definiu, apanhando um por um de nós no olhar. – “Assassinos – els são os Judas. Desse nome, agora, que é o deles...” – explicou João Concliz. – “Arre, vote: dois judas, podemos romper as aleluias!

Aleluia! Aleluia! Carne no prato, farinha na cuia!...” – ele aprovou, deu aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim era que Zé Bebelo era. Como quando trovejou: desse trovôo de alto e rasto, dos gerais, entrementes antes dos gotejos de chuva esquentada: o trovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas trovejou de cala-a-boca – e Zé Bebelo tocou um gesto de costas da mão, respeitoso disse: – “Isto é comigo...” Do que se tratava, retorno e conto, ele o seguinte revelou: – “Tudo eu não tinha, com os meus, munição para nem meia-hora...” A gente reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um de nós sabia que aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso, somenos, por detrás de tanta papagaiagem um homem carecia de ter a valentia muito grande.

A cômodo ele começou, nesse dia, nessa hora; não esbarrou mais. Achou de ir ver o lugar da cova, e as armas e trens que Medeiro Vaz deixava, essas determinou que, o morto não tendo parentes, então para os melhores mais chegados como lembrança ficassem: as carabinas e revólveres, a automática de rompida e ronco, punhal, facão, o capote, o cantil revestido, as capangas e alforjes, as cartucheiras de trespassar. Alguém disse que o cavalo grande, murzelo-mancho, devia de ficar sendo dele mesmo. Não quis. Chamou Marcelino Pampa, a ele fez donativo grave: – “Este animal é vosso, Marcelino, merecido. Porque eu ainda estou para ver outro com igual siso e caráter!” Apertou a mão dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar, perturbado. Desse fato em diante, era capaz de se morrer, por Zé Bebelo. Mas, para si mesmo, Zé Bebelo guardou somente o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pelego berbezim, de forrar sela, e um bentinho milagroso, em três baetas confeccionado.

Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo.

Aprendeu os nomes, de um em um, e em que lugar nascido, resumo da vida, quantos combates, e que gostos tinha, qualquer oficio de habilidade. Olhou e contou as pencas de munição e as armas. Repassou os cavalos, prezando os mais bem ferrados e os de agüentada firmeza. – “Ferraduras, ferraduras! Isto é que é importante...” – vivia dizendo. Repartiu os homens em quatro pelotões – três drongos de quinze, e um de vinte – em cada um ao menos um bom rastreador. – “Carecemos de quatro buzinas de caçador, para os avisos...” – reclamou. Ele mesmo tinha um apito, pendurado do pescoço, que de muito longe se atendia.

Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa, João Concliz, e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, o de vinte

– nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim, Sesfredo, o Quipes, Joaquim Beiju, Coscorão, Dimas Doido, o Acauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Credo, Marimbondo, Rasgaem-Baixo, Jiribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas. Só que, tidos todos repartidos, ainda sobravam nove – serviram para esquadrão adeparte, tomar conta dos burros cargueiros, com petrechos e mantimentos. O testa deles foi Alaripe, por bom

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que fosse para tudo ser. Aos esses, mesmo, se comediu obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o jacaré exercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador deles; e os outros ajudavam; mas Raimundo Lê, que entendia de curas e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com remédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum. Mas Zé Bebelo não se atontava: – “Aí em qualquer parte, depois, se compra, se acha, meu filho. Mas, vai apanhando folha e raiz, vai tendo, vai enchendo... O que eu quero é ver o surrão à mão...” O

acampamento da gente parecia uma cidade.

Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia ordens. – “Trabucar duro, para dormir bem!” – publicava.

Gostadamente: – “Morrendo eu, depois vocês descansam...” – e ria: – “Mas eu não morro...” Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer nó. E – engraçado dizer – a gente apreciava aquilo.

Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor que tudo é se cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra. O mais eram traquejos, a cavalo, para lá e para cá, ou esbarrados firmes em formatura, então Zé Bebelo perequitava, assoviando, manobrava as patrulhas, vai-te, volta-te. Somente: – “Arre, temos nenhum tempo, gente! Capricha...” Sempre, no fim, por animar,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas levantava demais o braço: – “Ainda quero passar, a cavalos, levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz falta é uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais... Mas heide! Ah, que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no haja vinho...

Arranchar no mercado da Diamantina... Eli, vamos no Paracatu-do-Príncipe!...” Que boca, que o apito: apitava.

A sério, ele me chamava para o lado dele, e ia mandando vir outros – Marcelino Pampa, João Concliz, Diadorim, o urucuiano Pantaleão, e o Fafafa, vice-mandantes. Todos tinham de expor o que sabiam daquele gerais território: as distâncias em léguas e braças, os vaus, o grau de fundo dos marimbus e dos poços, os mandembes onde se esconder, os mais fartos pastos. Como Zé Bebelo simplificava os olhos, e perguntando e ouvindo avante.

Às vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo representado. Ia organizando aquilo na cabeça. Estava aprendido.

Com pouco, sabia mais do que nós juntos todos. Bem eu conhecia Zé Bebelo, de outros currais! Bem eu desejasse ter nascido como ele... Aí, saía, por caçar. Sucinto que gostava de caçar; mas estava era sujeitando a exame o morro, discriminando.

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