Desarmado, uma vez, caminhou para o Leôncio Du, que tinha afastado todo o mundo e meneava um facãozão. Como gritou: –
“Você quer vermelho? Te racho, fré!” Ao de que, o Leôncio Du decidiu deixou o facão cair, e se entregou. Senhor ouve e sabe?
Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode. E Zé Bebelo pegava no ar as pessoas. Chegou um brabo, cabra da Zagaia, recomendado. – “Tua sombra me espinha, juazeiro!” – Zé Bebelo a faro saudou. E mandou amarrar o sujeito, sentar nele uma surra de peia. Atual, o cabra confessou: que tinha querido vir drede para trair, em empreita encobertada.
Zé Bebelo apontou nos cachos dele a máuser: estampido que espatifa – as miolagens foram se grudar longe e perto. A gente pegou cantando a Moda-do-Boi.
No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dançava as danças, exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical; só não praticava de buzo nem baralho – declarando ter receios, por atreito demais a vício e riscos de jogo. Sem menos, se
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol.
Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios
– e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca.
Certo dia, se achando trotando por um caminho completo novo, exclamou: – “Ei, que as serras estas às vezes até mudam muito de lugar!...” – sério. E era. E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, há, há. Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento. Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem achasse, só aos brados: – “Viva a lei! Viva a lei!...” – e era o pipoco-paco. Ou: – “Paz! Paz!” – gritava também; e bala: se entregaram mais dois. – “Viva a lei! Viva a lei!...” Há-de-o, que quilate, que lei, alguém soubesse? Tanto aquilo, sucinto, a fama correu. Dou-lhe qual: que, uma vez, ele corria a cavalo, por exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de joelhos na estrada, requerendo: – “Não faz vivalei em mim não, môr-de-Deus, seu Zebebel’, por perdão...” E Zé Bebelo jogou para o pobre uma cédula de dinheiro; gritou: – “Amonta aqui, irmão, na garupa!” – trouxe o outro para com a gente jantar.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Esse era ele. Esse era um homem. Para Zé Bebelo, melhor minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foi uma das pessoas nesta vida que eu mais prezei e apreciei.
Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha contando. A ser que, de campinas a campos, por morros, areiões e varjas, o Sesfredo e eu chegamos no Marcavão. Antes de lá, inchou o tempo, para chover. Chuva de desenraizar todo pau, tromba: chuvão que come terra, a gente vendo. Quem mede e pesa esses demais d’água? Rios foram se enchendo. Apeamos no Marcavão, beira do do-Sono. Medeiro Vaz morreu, naquele país fechado. Nós chegamos em tempo.
Ao quando encontramos o bando, foi ali, Medeiro Vaz já estava mal; talvez por isso a alegria comum não pôde se dizer, nem Diadorim me abraçou nem demonstrou um salves por minha volta. Fiquei sincero. A tristeza e a espera má tomavam conta da gente. – “O mais é o pior: é que tem inimigo, próximo, tocaiando...” – Alaripe me disse. Muito chovido de noite-as árvores esponjadas. Mesmo dava um frio vento, com umidades.
Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham levantado um boi – o senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, por resguardar a pessoa do rumo donde vem o vento – o bafe-bafe.
Acampávamos debaixo de grandes árvores. O barulhim do rio
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas era de bicho em bicheira. Medeiro Vaz jazente numa manta de pele de bode branco – aberto na roupa, o peito, cheio de cabelos grisalhados. A barriga dele tinha inflamado muito, mas não era de hidropisia. Era de dores. Quando vislumbrou de mim, aí armou no se aprumar, pelejando para me ver. Os olhos
– o alvor, como miolo de formigueiro. Mas se abriu, arriou os braços, e mediu o chão com suas costas. “Está no bilim-bilim” –
eu pensei. Ah, a cara – arre de amarela, o amarelamento: de palha! Assim desse jeito ele levou o dia quase a termo.
A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou adeparte; ele tramava as lágrimas. – “Amizade, Riobaldo, que eu imaginei em você esse prazo inteiro...” – e apertou minha mão.
Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: – “Acode, que o chefe está no fatal!” Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo tudo.
E o queixo dele não parava de mexer; grandes momentos.
Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como de propósito.
Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para proteger a morte dele. Medeiro Vaz – o rei dos gerais ; como era que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas, escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou: – “Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitaneia?...” Com a estrampeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. Ele avermelhava os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me apertou estreito.
Eu não queria ser chefe! “Quem capitaneia...” Vi meu nome no lume dele. E ele quis levantar a mão para me apontar.
As veias da mão... Com que luz eu via? Mas não pôde. A morte pôde mais. Rolou os olhos; que ralava, no sarrido. Foi dormir em rede branca. Deu a venta.
Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva, procuramos o que acender. Só se trouxe uma vela de carnaúba, o toco, e um brandão de tocha. Eu tinha passado por um susto.
Agora, a meio a vertigem me dava, desnorteado na vontade de falar aqueles versos, como quem cantasse um coreto: Meu boi preto mocangueiro,
árvore para te apresilhar?
Palmeira que não debruça:
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredasburiti – sem entortar...
Deviam de tocar os sinos de todas as igrejas!
Cobrimos o corpo com palmas de buriti novo, cortadas molhadas. Fizemos quarto, todos, até ao quebrar da barra. Os sapos gritavam latejado. O sapo-cachorro arranhou seu rouco.
Alguma anta assoviava, assovio mais fino que o relincho-rincho dum poldrinho. De aurora, cavacamos uma funda cova. A terra dos gerais é boa.
Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme:
– “Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as derradeiras ordens...”