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Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E

agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da casa, por debaixo dela, socavado no antro do chão – lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim. O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam crendo e temendo. Parece que todo o mundo carece disso. Eu acho, que.

Assim, olhe: tem um marimbu – um brejo matador, no Riacho Cizlá se afundou uma boiada quase inteira, que apodreceu; em noites, depois, deu para se ver, deitado a fora, se deslambendo em vento, do cafofo, e perseguindo tudo, um

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas milhão de lavareda azul, de jãdelãfo, fogo-fá. Gente que não sabia, avistaram, e endoideceram de correr fuga. Pois essa estória foi espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar, do que eu ou o senhor, falavam que era sinal de castigo, que o mundo ia se acabar naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um padre, ali perto umas vinte léguas, por via do padre não ter consentido de casar um filho com sua própria mãe. A que, até, cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê, hê?...

Agora, a forca, eu vi – forca moderna, esquadriada, arvorada bem erguida no elevado, em madeira de boa lei, parda: sucupira. Ela foi num morrote, depois do São Simão do Bá, perto da banda da mão-direita do Pripitinga. A estúrdia forca de enforcar, construída, aprovada ali particularmente, porque não tinham recurso de cadeia, e pajear criminoso por viagens era dificultoso, tirava as pessoas de seus serviços. Aí, então, usavam.

Às vezes, da redondeza, vinham até trazendo o condenado, a cavalo, para a forca, pública. Só que um pobre veio morar próximo, quase debaixo dela, cobrava sua esmola, em cada útil caso, dando seguida cavava a cova e enterrava o corpo, com cruz.

No mais nada.

Semelhante não foi, quando um homem, Rudugério de Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um filho dele ir matar outro, buscar para matarem, esse outro, que roubou sacrário de ouro da igreja da Abadia. Aí, então, em vez de cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão, os dois vieram e mataram mesmo foi o velho pai deles, distribuído de foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices, urdindo com cordões de embira e várias flores. E enqueriram o cadáver paterno em riba da casa – casinha boa, de telhas, a melhor naquele trecho. Daí, reuniram o gado, que iam levando para distante vender. Mas foram logo pegos. A pegar, a gente ajudou.

Assim, prisioneiros nossos. Demos julgamento. Ao que, fosse Medeiro Vaz, enviava imediato os dois para tão razoável forca.

Mas porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era – o senhor saiba Zé Bebelo!

Com Zé Bebelo, oi, o rumo das coisas nascia inconstante diferente, conforme cada vez. A papo: – “Co-ah! Por que foi que vocês enfeitaram premeditado as foices?” – ele interrogou. Os dois irmãos responderam que tinham executado aquilo em padroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora em adiantado remitir o pecado que iam obrar, e obraram dito e feito. Tudo que Zé Bebelo se entesou sério, em pufo, empolo, mas sem rugas em testa, eu prestes vi que ele estava se rindo por de dentro. Tal, tal, disse: – “Santíssima Virgem...” E o pessoal todo tirou os

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas chapéus, em alto respeito. – “Pois, se ela perdoa ou não, eu não sei. Mas eu perdôo, em nome dela – a Puríssima, Nossa Mãe!” –

Zé Bebelo decretou. – “O pai não queria matar? Pois então, morreu – dá na mesma. Absolvo! Tenho a honra de resumir circunstância desta decisão, sem admitir apelo nem revogo, legal e lealdado, conformemente!...” Aí mais Zé Bebelo disse, como apreciava: – “Perdoar é sempre o justo e certo...” – pirlimpim, pimpão. Mas, como os dois irmãos careciam de algum castigo, ele requisitou para o nosso bando aquela gorda boiada, a qual pronto revendemos, embolsamos. E desse caso derivaram também uma boa cantiga violeira. Mas deponho que Zé Bebelo somente determinou assim naquela ocasião, pelo exemplo pela decência. Normal, quando a gente encontrava alguma boiada tangida, ele cobrava só imposto de uma ou umas duas reses, para o nosso sustento nos dias. Autorizava que era preciso se respeitar o trabalho dos outros, e entusiasmar o afinco e a ordem, no meio do triste sertão.

Zé Bebelo – ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava, diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz.

Desarmado, uma vez, caminhou para o Leôncio Du, que tinha afastado todo o mundo e meneava um facãozão. Como gritou: –

“Você quer vermelho? Te racho, fré!” Ao de que, o Leôncio Du decidiu deixou o facão cair, e se entregou. Senhor ouve e sabe?

Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode. E Zé Bebelo pegava no ar as pessoas. Chegou um brabo, cabra da Zagaia, recomendado. – “Tua sombra me espinha, juazeiro!” – Zé Bebelo a faro saudou. E mandou amarrar o sujeito, sentar nele uma surra de peia. Atual, o cabra confessou: que tinha querido vir drede para trair, em empreita encobertada.

Zé Bebelo apontou nos cachos dele a máuser: estampido que espatifa – as miolagens foram se grudar longe e perto. A gente pegou cantando a Moda-do-Boi.

No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dançava as danças, exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical; só não praticava de buzo nem baralho – declarando ter receios, por atreito demais a vício e riscos de jogo. Sem menos, se

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol.

Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios

– e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca.

Certo dia, se achando trotando por um caminho completo novo, exclamou: – “Ei, que as serras estas às vezes até mudam muito de lugar!...” – sério. E era. E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, há, há. Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento. Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem achasse, só aos brados: – “Viva a lei! Viva a lei!...” – e era o pipoco-paco. Ou: – “Paz! Paz!” – gritava também; e bala: se entregaram mais dois. – “Viva a lei! Viva a lei!...” Há-de-o, que quilate, que lei, alguém soubesse? Tanto aquilo, sucinto, a fama correu. Dou-lhe qual: que, uma vez, ele corria a cavalo, por exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de joelhos na estrada, requerendo: – “Não faz vivalei em mim não, môr-de-Deus, seu Zebebel’, por perdão...” E Zé Bebelo jogou para o pobre uma cédula de dinheiro; gritou: – “Amonta aqui, irmão, na garupa!” – trouxe o outro para com a gente jantar.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Esse era ele. Esse era um homem. Para Zé Bebelo, melhor minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foi uma das pessoas nesta vida que eu mais prezei e apreciei.

Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha contando. A ser que, de campinas a campos, por morros, areiões e varjas, o Sesfredo e eu chegamos no Marcavão. Antes de lá, inchou o tempo, para chover. Chuva de desenraizar todo pau, tromba: chuvão que come terra, a gente vendo. Quem mede e pesa esses demais d’água? Rios foram se enchendo. Apeamos no Marcavão, beira do do-Sono. Medeiro Vaz morreu, naquele país fechado. Nós chegamos em tempo.

Ao quando encontramos o bando, foi ali, Medeiro Vaz já estava mal; talvez por isso a alegria comum não pôde se dizer, nem Diadorim me abraçou nem demonstrou um salves por minha volta. Fiquei sincero. A tristeza e a espera má tomavam conta da gente. – “O mais é o pior: é que tem inimigo, próximo, tocaiando...” – Alaripe me disse. Muito chovido de noite-as árvores esponjadas. Mesmo dava um frio vento, com umidades.

Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham levantado um boi – o senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, por resguardar a pessoa do rumo donde vem o vento – o bafe-bafe.

Acampávamos debaixo de grandes árvores. O barulhim do rio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas era de bicho em bicheira. Medeiro Vaz jazente numa manta de pele de bode branco – aberto na roupa, o peito, cheio de cabelos grisalhados. A barriga dele tinha inflamado muito, mas não era de hidropisia. Era de dores. Quando vislumbrou de mim, aí armou no se aprumar, pelejando para me ver. Os olhos

– o alvor, como miolo de formigueiro. Mas se abriu, arriou os braços, e mediu o chão com suas costas. “Está no bilim-bilim” –

eu pensei. Ah, a cara – arre de amarela, o amarelamento: de palha! Assim desse jeito ele levou o dia quase a termo.

A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou adeparte; ele tramava as lágrimas. – “Amizade, Riobaldo, que eu imaginei em você esse prazo inteiro...” – e apertou minha mão.

Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: – “Acode, que o chefe está no fatal!” Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo tudo.

E o queixo dele não parava de mexer; grandes momentos.

Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como de propósito.

Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para proteger a morte dele. Medeiro Vaz – o rei dos gerais ; como era que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas, escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou: – “Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitaneia?...” Com a estrampeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. Ele avermelhava os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me apertou estreito.

Eu não queria ser chefe! “Quem capitaneia...” Vi meu nome no lume dele. E ele quis levantar a mão para me apontar.

As veias da mão... Com que luz eu via? Mas não pôde. A morte pôde mais. Rolou os olhos; que ralava, no sarrido. Foi dormir em rede branca. Deu a venta.

Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva, procuramos o que acender. Só se trouxe uma vela de carnaúba, o toco, e um brandão de tocha. Eu tinha passado por um susto.

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