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Sofismei: se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco!

Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem importância. Nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, por conta desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas qual, se viu um bicho – rã brusca, feiosa: botando bolhas, que à lisa cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás, discordes. Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes desaparecer e tornar a aparecer, sem menos. Ah, quem faz isso não é por ser e se saber pessoa culpada?

No que vim para um grupo de companheiros, esses estavam jogando buzo, enchendo folga. Por simples que a companheirada naqueles derradeiros tempos me caceteava com um enjôo, todos eu achava muito ignorantes, grosseiros cabras.

Somente que na hora eu queria a frouxa presença deles – fulão e sicrão e beltrão e romão – pessoal ordinário. A tanto, mesmo sem fome, providenciei para mim uma jacuba, no come-calado.

E quis – que até me perguntei – pensar na vida: “Penso?” Mas foi no instante em que todos levantaram as caras: só sendo um rebuliço, acolá, na virada que principiava a vertente – onde é que estavam uns outros, que chamavam, muito, acenando especial.

Pois fomos, ligeiro, ver o que, subindo pelo resfriado.

Passava era uma tropa, os diversos lotes de burros, que vinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E o arrieiro-mestre relatando uma infeliz notícia, dessas da vida. – “Ele era alto, feições compridas, dentuço?” – Medeiro Vaz exigiu certeza.

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– “Olhe, pois era” – o arrieiro respondeu – “e, antes de morrer, deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer, porque aí se exalou. Comandante, o senhor creia, nós tivemos grande pena...” A gente, em volta, se consternava. Aqueles tropeiros, no Cururu, tinham achado o Santos-Reis, que morria urgente; tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Ao menos, mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus, em voto todos se benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais falta – ele estava viajando para trazer recado e combinação, da parte de Só Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na outra grande banda do Rio.

– “Agora alguém carece de ir...” – Medeiro Vaz decidiu, olhando salteado; amém! – nós apreciávamos. Eu espiei, caçando Diadorim, que ali que era a mocinha de cabelos louros.

– “Sesfredo, me conta, me fala nesse acontecer...” – nem bem cem braças andadas eu já pedia a ele. Era como se eu tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor. – “E você não volta para lá, Sesfredo? Você agüenta o existir?” – perguntei. –

“Guardo isso, para às vezes ter saudade. Berimbau! Saudade, só...” – e ele alargou as ventas, de tanto riso. Vi que a estória da moça era falsa. De inventar )ouco se ganha. Regra do mundo é

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas muito dividida. O Sesfredo comia muito. E sabia assoviar seguido, copiando o de muitos pássaros.

Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e municipios, jogamos uma viagem por este Norte, meia geral.

Assim conheço as províncias do Estado, não há onde eu não tenha aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa Maria –

Barreiro Claro – Cabeça de Negro – Córrego Pedra do Gervásio

– Acari – Vieira – e Fundo – buscando jeito de encostar no de São Francisco. Novidade não houve. Passamos, numa barca. Só sempre bater para o nascente, direitamente em cima de Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: um pessoal nosso perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca, brabas terras vazias do Rio Verde-Grande. De madrugada, acordamos em sua janela um velhozinho, dono de um bananal. O velhozinho era amigo, executou o recado. Daí a cinco madrugadas, retornamos. Era para vir alguém, quem veio foi João Goanhá, próprio. E as descrições que deu foram de todas as piores. Só Candelário? Morto em tiroteio de combate, metralhadoras tinham serrado o corpo dele, de esguelha, por riba da cintura. O

Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. Titão Passos?

Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de se escapar para a Bahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos. Só mesmo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldo de uns homens, os poucos. Mas coragem e munição não faltavam. – “E

os Judas?” – perguntei, com triste raciocínio: por que era que os soldados não deixavam a gente em paz, mas com aqueles não terçavam? – “Se diz que eles têm uma proteção preta...” – João Goanhá me esclareceu: – “O Hermógenes fez o pauto. É o demônio rabudo quem pune por ele...” Nisso todos acreditavam.

Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que eu fui o primeiro que cri.

Ainda disse João Goanhá que estávamos em brevidade.

Porque ele sabia que os Judas, reforçados, tinham resolvido passar o Rio em dois lugares, e marcharem em cima de Medeiro Vaz, para acabar com ele de uma vez, no país de lá. Onde era que o perigo, Medeiro Vaz precisava de nós.

Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para a Cachoeira do Salto, e esbarramos com tropa de soldados – tenente Plínio.

Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande – tenente Rosalvo.

Fogo no Jatobá Torto – sargento Leandro. Volteamos. Sobre aí, me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos. No formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso. Eu era um homem restante trivial. A verdade que diga, eu bem defronte de mim se portava, mesmo segurava uma vara-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: – “Se sendo ordens, Chefe, eu gostava era de ir...” Medeiro Vaz limpou a goela. A meio, eu estava me lançando, mas mais negaceando prosápia: duvidoso d’ele consentir; pelo bom atirador que eu era, o melhor e mor, necessitavam de mim, haviam de querer me mandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se deu o que se deu – o isto é. Medeiro Vaz concordou! – “Mas carece de levar um companheiro...” – ele propôs. Aí em tanto eu não devia de me calar, deixar alheia a escolha do segundo, que não me competia? Ah, ânsia: que eu não queria o que de certo queria, e que podia se surtir de repente... E a vontade de fim, que me ora vinha ranger na boca, me levou num avanço: – “Sendo suas ordens, Chefe, o Sesfredo comigo vai...” – falei. Nem olhei Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e despachou, em duríssimo: – “Vai, então, e no caminho não morre!” A ser que Medeiro Vaz, por esse tempo, já acusava doença a quase acabada – no peso do fôlego e no desmancho dos traços. Estava amarelo almecegado, se curvava sem querer, e diziam que no verter água ele gemia. Ah, mas outro igual eu não conheci. Quero ver o homem deste homem!... Medeiro Vaz – o Rei dos Gerais...

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E

dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível.

Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer.

Mire veja o que a gente é: mal dali a um átimo, eu selando meu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muito entristecia.

Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie duma vagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele, baixinho: –

“Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: – “Viagem boa, Riobaldo. E boa-sorte...” Despedir dá febre.

Galopando junto com Sesfredo, larguei aquele lugar do Buriti das Três Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E então eu decifrei meu arranque de ter querido vir com o Sesfredo. Que ele, se sabia, tinha deixado, fazia muitos anos, em terras do Jequitinhonha, uma moça que apaixonava, e achava que não tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava.

Como é, então, que um se repinta e se sarrafa? Tudo sobrevém.

Acho, acho, é do influimento comum, e do tempo de todos.

Tanto um prazo de travessia marcada, sazão, como os meses de seca e os de chuva. Será? Medida de muitos outros igualasse com a minha, esses também não sentindo e não pensando. Se não, por que era que eram aqueles aprontados versos – que a gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por estradas jornadas, à alegria fingida no coração?: Olererê, baiana...

eu ia e não vou mais: eu faço

que vou

lá dentro, oh baiana!

Are sens