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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas enjoa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia, é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho.
Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah; formei aquela pergunta, para compadre meu Quelemém. Que me respondeu: que, por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que todos os feios passados se exalaram de não ser – feito sem-modez de tempo de criança, más-artes. Como a gente não carece de ter remorso do que divulgou no latejo de seus pesadelos de uma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se! Ahã. Por isso dito, é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadre meu Quelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma que tem –
que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato. Sujeito assim madruga três vezes, em antes de querer facilitar em qualquer minudência repreensível... Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei!
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho –
assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei. – “Amanhã eu tiro...” – falei, comigo.
Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...
Somenos, não ache que religião afraca. Senhor ache o contrário. Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava – cré que o caroá levanta a flor. Eli, bom meu pasto... Mocidade. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir. Também, eu desse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito, não nem por isso não dou por baixa minha competência, num fogo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem aqui com guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com sobejos olhares, e eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! É na boca do trabuco: é no té-retêretém... E
sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente. Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda abaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. Mais légua, se tanto, tem o Acauã, e tem o Compadre Ciril, ele e três filhos, sei que servem. Banda desta mão, o Alaripe: soubesse o senhor o que é que se preza, em rifleio e à faca, um cearense feito esse! Depois mais: o João Nonato, o Quipes, o Pacamã-de-Presas. E o Fafafa
– este deu lances altos, todo lado comigo, no combate velho do Tamanduá-tão: limpamos o vento de quem não tinha ordem de respirar, e antes esses desrodeamos... O Fafafa tem uma eguada.
Ele cria cavalos bons. Até um pouco mais longe, no pé-de-serra, de bando meu foram o Sesfredo, Jesualdo, o Nélson e João Concliz. Uns outros. O Triol... E não vou valendo? Deixo terra com eles, deles o que é meu é, fechamos que nem irmãos. Para que eu quero ajuntar riqueza? Estão aí, de armas areiadas.
Inimigo vier, a gente cruza chamado, ajuntamos: é hora dum bom tiroteiamento em paz, exp’rimentem ver. Digo isto ao
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor, de fidúcia. Também, não vá pensar em dobro.
Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina... Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta!
Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.
Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...
Eh, que se vai? Jajá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não.
Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias!
Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora – digo por mim – o senhor vem, veio tarde.
Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.
Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O
cio da tigre preta na Serra do Tatu – já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garoa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece – neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua – se diz – e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas...
Isto – no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão – depois dali tem uma
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro, deslembro. Ou – o senhor vai –
no soposo: de chuva-chuva. Vê um córrego com má passagem, ou um rio em turvação. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-deSanta-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do que no Chapadão das Vertentes... Caçar anta no Cabeça-de-Negro ou no Buriti-Comprido – aquelas que comem um capim diferente e roem cascas de muitas outras árvores: a carne, de gostosa, diverseia. Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... Ah. Diz-se que o Governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatu, por aí...
Na Serra do Cafundó – ouvir trovão de lá, e retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo na tempestade... De em de, sempre, Urucuia acima, o Urucuia –
tão a brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do chão
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado foge de lá, por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador –
donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas... É vida!... Passado o Porto das Onças, tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, se descansou.