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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até – contanto que fosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços ou tropeiros

– não se importava, mesmo dava sua placença. Comemos farinha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Suçuarão. Ela estava chegando do arranchado de Medeiro Vaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas profecias. Loucura duma? Para quê? Eu nem não acreditei. Eu sabia que estávamos entortando era para a Serra das Araras –

revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo quanto era bandido em folga se escondia – lá se podia azo de combinar mais outros variáveis companheiros. Depois, de arte: que o Liso do Suçuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é, se? Ah, existe, meu! Eh... Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do Pardo... Também onde se forma calor de morte – mas em outras condições... A gente ali rói rampa... Ah, o Tabuleiro? Senhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da-Vaca-Preta até Córrego Catolé, cá embaixo, e de em desde a nascença do Peruaçu até o rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras...

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Suçuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros.

Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não agüentou a raiva em meus olhos. – “Seô Medeiro Vaz, pois foi ele mesmo próprio quem me contou...” – ela teve de falar.

Soturnos. Não era possível!

Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana. Às vezes eu lavava a roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque eu achava tal serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com mais jeito, mão melhor. Ele não indagou donde eu tinha estado, e eu menti que só tinha entrado lá por causa da velha Ana Duzuza, a fim de requerer o significado do meu futuro.

Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas braços dele – tão bonitos braços alvos, em bem feitos, e a cara e as mãos avermelhadas e empoladas, de picadas das mutucas.

No momento, foi que eu caí em mim, que podia ter perguntado à Ana Duzuza alguma passagem de minha sina por vir. Também uma coisa, de minha, fechada, eu devia de perguntar. Coisa que nem eu comigo não estudava, não tinha a coragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por detrás o pano do destino? Não perguntei, não tinha perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiçado? Me arrependi de não ter pedido o resumo à Ana Duzuza. Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.

Viver nem não é muito perigoso?

Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do Suçuarão – a dentro, adiante, até ao fim. – “E certo é. É

certo” – Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas miúda palavra. E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um ciúme amargoso. Sendo sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma confiança muito maior do que em nós outros todos, de formas que com ele externava os assuntos. Essa diferença de regra agora me turvava? Mas Medeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este mundo com mão leal, não variava nunca, não fraquejava. Eu sabia que ele, a bem dizer, só guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. loca Ramiro tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente – o escuro, escuros.

Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por lá do Suçuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuía sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá morava sua família dele legítima, de raça – mulher e filhos. A gente suprisse de varar o Liso em boas farsas, se chegava lá sem ser esperados, arrastava aquele pessoal por dura surpresa

– acabou-se com aquilo! Mesmo quem havia de deduzir que o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Liso do Suçuarão prestasse para nele caminho se impor? Ah, eles prosperavam em sua fazenda feito num quartel de bronze

– com que por outros cantos não se podia remeter, pois de arredor decerto tinham vigias, reforço de munição e récua de camaradas, pelos pontos de passagem dificultosa, que eles governavam, em cada grota e cada ipueira. Truco que, de repente, do lado mais impossível, a gente fosse surgir de sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Eu escutei, e perfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais sério, temperou: – “Essa velha Ana Duzuza é que inferna e não se serve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino a tenção dele, e não devia de ter falado as pausas... Essa carece de morrer, para não ser leleira...”

Ouvi mal ouvi. Me vim d’águas frias. Diadorim era assim: matar, se matava – era para ser um preparo. O judas algum? – na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu não sabia?

Não sou homem de meio-dia com orvalhos, não tenho a fraca natureza. Mas me venceu pena daquela Ana Duzuza, ela com os olhos para fora – a gente podia pegar nos dedos. Coisa que me contou tantas lorotas. Trem, caco de velha, boca que se fechava aboborosa, de sem dentes. Raspava a rapadura com a quicé, ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto;

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ou, se não, segurava o naco, rechupando, lambendo. A gente engrossava nojo, salivava. Por que é, então, que ela merecia tanto dó? Eu não tive solércia de contradizer. As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razão dele era do estilo acinte. Só previ medo foi de que ele falasse para eu mesmo ir voltar lá, por minhas próprias acabar a Ana Duzuza.

Eu não sojigava tudo por sentir. Fazia tempo que eu não olhava Diadorim nos olhos.

Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velha Duzuza, pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha também, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de mim uma decisão, e eu abri sete janelas: – “Disso que você disse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente dá atraso...” – eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava: – “Já sei que você esteve com a moça filha dela...” – ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim também se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhou em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco.

E eu quase gritei: – “Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!...”

Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas palmas. – “Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste confim de gerais?!” – ele baixo exclamou. E tive ira. – “Dou!” –

falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava:

– “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai...” – ele disse – não sei se estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim.

Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo.

Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi declarar: –

Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo sistema, e com a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse. Será por quê? Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três tranços. – “Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essa Ana Duzuza fica sendo minha mãe!” – foi o que eu disse. E, fechando, quase gritei: – “Por mim, pode cheirar que chegue o manacá: não vou! Reajo dessas barbaridades!...”

Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele.

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