Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. E tinha nojo maior daquela Ana Duzuza, que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu quase reconheci um surdo prestígio de, sendo preciso, ir lá, por mim, reduzir a velha – só não podia maltratar era Nhorinhá, que, ao tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certo não
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas regulasse, ôxe? Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que e ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si.
Para isso é que o muito se fala?
E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz.
Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? E a idéia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê o lícito: que, ou então – será que pode também ser que tudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais crônico: que, quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– que já se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus não queira; Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim: quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que de verdade a gente pressente? Dúvido dez anos. Os pobres ventos no burro da noite. Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo...
Relembro Diadorim. Minha mulher que não me ouça. Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.
Mas aí, eu estava contando – quando eu gritei aquele desafio raivoso, Diadorim respondeu o que eu não esperava: –
“Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não é preciso se haver cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem nós vamos com Medeiro Vaz para fazer barbaridade com a mulher e filhos pequenos daquele pior dos dois Judas, tão bem que mereciam, porque ele e os da laia dele têm costumes de proceder assim. Mas o que a gente quer é só pegar a família conosco prisioneira; então, ele vem, se vem! E vem obrigado pra
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas combates... Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...” Disse. Tinha tornado a pôr a mão na minha mão, no começo de falar, e que depois tirou; e se espaçou de mim. Mas nunca eu senti que ele estivesse melhor e perto, pelo quanto da voz, duma voz mesmo repassada. Coração – isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro. O amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem.
Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: – “Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...”
Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.
– “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse cego, de nascença.
Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Orfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões.
Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O
senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: – “Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-d’angola, como todo o mundo faz?” – “Quero criar nada não...” – me deu resposta: – “Eu gosto muito de mudar...”
Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus, por
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra – baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde que verte no Paracatu. Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos.
Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacedo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Fica-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...
De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, uma noite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro que era em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava, tinha querido se adiar das restadas chuvas de março – dia de São José e sua enchente temposa – para pegar céu perfeito, com os campos ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiro por campinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse, depo-depois. Porque era extraordinária verdade, logo conheci; não achei terrível. Tangemos, esbarrando dois dias no Vespê – lá se tinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dum sitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome. Nos caminhos ainda se lambuzava muita lama de ontem. – “Versar viagem a cavalo sem ter estradas – só doido é quem faz isso, ou jagunz...” – aquele Jõe Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, mas demais de simplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria, fortemente.
Mas erro era – porquanto Medeiro Vaz sempre soube rumo prático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio reparou na quantidade de comidas e mantimentos que a gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas despropósito, por amor daquela fartura – as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o que via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. –
“Bobou?” – foi só o que Medeiro Vaz indeferiu. – “Bobei, chefe.
Perdão peço...” – Jõe Engrácio reverenciou.
Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, a praxe, homem baseado. Às vezes vinha falando surdo, de resmão. Com ele, ninguém vereava. De estado calado, ele sempre aceitava todo bom e justo conselho. Mas não louvava cantoria. Estavam falando todos juntos? Então Medeiro Vaz não estava lá. O que tinha sido antanha a história mesma dele, o senhor sabe? Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras é os desmandos de jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez-por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô – espiou até o voejo das cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada – um cemiteriozinho em beira do cerrado – então desmanchou cerca, espalhou as pedras: pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cachos d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça. De anos, andava. Dizem que foi ficando cada vez mais esquisito.
Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra esperança maior: para ele, loca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregoverno. Fato que Joca Ramiro também igualmente saía por justiça e alta política, mas só em favor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres. Mas Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Por isso, nós todos obedecíamos.
Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos gerais
– ele era. A gente era os medeiro-vazes.