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Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe.

Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém – então dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas! “... O

Hermógenes tem pautas...” Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo.

A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer?

Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio?

Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.

Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião – areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás.

Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro – no desentender aquilo os cavalos arupanavam. Diadorim – sempre em prumo a cabeça – o sorriso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: “Hê, valentes somos, corruscubas, sobre ninguém – que vamos padecer e morrer por aqui...” Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um vágado – como tonteira de truaca. Havia eu de saber por quê? Acho que provinha de excessos de idéia, pois caminhadas piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, meu medo. Agüentei. Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava – eu ressentia as correias dos correames, os formatos. A com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d’água, da cabaça – eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar os burros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intruji duas coisas, em cruz: que Medeiro Vaz estava insensato? – e que o Hermógenes era pactário! Tomo que essas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz que descansando do meu lado, assim ouvi: – “Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem...” Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o embalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Suçuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir – e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava – era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves – iam como o costume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando – só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de delírios. Os

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava.

De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais – Buritis Altos, cabeceira de vereda – na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria viver ou morrer comigo – que a gente se casasse. Saudade se susteve curta. Desde uns versos:

Buriti, minha palmeira,

lá na vereda de lá

casinha da banda esquerda,

olhos de onda do mar...

Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renuvem, e não achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo – pedação, tábua

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O

senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roçava longe dele em meus pensamentos. – “Riobaldo, não se matou a Ana Duzuza... Nada de reprovável não se fez...” –

falou. E eu não respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava – de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes – o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo d’água. O melhor de tudo é a água. No escaldado... “Saio daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília!” – eu jurei, do proposto de meus todos sofrimentos.

Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de ninguém: só gostava de mim, de mim! Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir é um certo decreto –

por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha declarado de morto. O Miquim,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um rapaz sério sincero, que muito valia em guerreio, esbarrou e se riu: – “Será que não é sorte?” Depois, se sofreu o grito de um, adiante: – “Estou cego!...” Mais aquele, o do pior – caiu total, virado torto; embaraçando os passos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas as caras.

Credo como algum – até as orelhas dele estavam cinzentas. E

outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dos-olhos. Medeiro Vaz a nada não atendia? Ouvi minhas veias. Aí, a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim – aquelas peças doeram na minha mão – tive que fiquei um instante no inclinado. – “Daqui, deste mesmo de lugar, mais não vou! Só desarrastado vencido...” – mas falei. Diadorim pareceu em pedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela beleza que nada mudava. – “Pois vamos retornar, Riobaldo...

Que vejo que nada campou viável...” – “Tal tempo!” – truquei, mais forte, rouco como um guariba. Foi aí que o cavalo de Diadorim afundou aberto, espalhado no chão, e se agoniou. Eu apeei do meu. Medeiro Vaz estava ali, num aspeito repartido.

Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o resultado. – “Nós temos de voltar, chefe?” – Diadorim solicitou.

Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse.

Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então – por primeira vez – abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi.

Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E – o senhor mais saiba – de supeto já eu estava remoçado, são, disposto! Todos influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim apalpou meu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube – que, a idéia de se atravessar o Liso do Suçuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado.

Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos.

Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto – juro ao senhor – enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de Deus, que nu por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse:

– “Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos...” Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. – “Aí, então, é a fome?” – uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-delégua de lá, um mandioca) sobrado. – “Arre que não!”

– ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandiocabrava! Esses olhavam com terrível raiva.

Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepego esquisito, e enganava o estômago. Melhor engolir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com tor-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas rão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dores, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nojo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Suçuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. – “Quem quiser bulir com ela, que me venha!” – Diadorim garantiu. –

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