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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Suçuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia! Até, o tanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Como fomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancados e es-corregador. Depois subimos. A parte de mais árvores, dos cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube – vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: buriti – verde que afina e esveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali se chamava o Bambual do Boi. Lá a gente seria de pernoitar e arrumar os finais preparos. Eu estava de sentinela, afastado um quarto-de-légua, num alto retuso. Dali eu via aquele movimento: os homens, enxergados tamanhinho de meninos, numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor de araçá, esse alvoroço, como tirando roupa e correndo para aproveitarem
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de se banhar no redondo azul da lagoa, de donde fugiam espantados todos os pássaros – as garças, os jaburus, os marrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhava que por saberem que no outro dia principiava o peso da vida, os companheiros agora queriam só pular, rir e gozar seu exato. Mas uns dez tinham de sempre ficar formando prontidão, com seus rifles e granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, de tardinha, quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, nas palmas dos buritis, roladas uma por uma. E o bambual, quase igualmente. Som bom de chuvas. Então, Diadorim veio me fazer companhia. Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais receio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade. E, digo ao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando Deus manda, depois quando o diabo pede se perfaz. O Danador!
Mas Diadorim estava a suaves. – “Olha, Riobaldo” – me disse –
“nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você lembra de sua mãe; eu lembro de meu pai...” Não fale nesses,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Diadorim... Ficar calado é que é falar nos mortos... Me faltou certeza para responder a ele o que eu estava achando. Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível.
Dormiu-se bem. De manhãzim – moal de aves e pássaros em revôo, e pios e cantos – a gente toda discorria, se esparramava, atarefados, ajudando para o derradeiro. Os bogós de couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos nas costas dos burrinhos. Também tínhamos trazido jumentos, só modo para carregar. Os cavalos ainda pastavam um pouco, do capim-grama, que tapava os pés deles. Se dizia muita alegria.
Cada um pegava também sua cabaça d’água, e na capanga o diário de se valer com o que comer – paçoca. Medeiro Vaz, depois de não dizer nada, deu ordem de seguida. Primeiro, para adiante, foi uma turma de cinco homens, a patrulhazinha.
Constante que com a gente estavam três bons rastreadores –
Suzarte, Joaquim Beiju e Tipote – esse Tipote sabia meios de descobrir cacimbas e grotas com o bebível, o Suzarte desempenhava um faro de cachorro-mestre, e Joaquim Beiju conhecia cada recanto dos gerais, de dia e de noite, referido
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas deletreado, quisesse podia mapear planta. Saímos, semoventes.
Seis novilhos gordos a gente repontava, serviam para se carnear em rota. De repente, com a gente se afastando, os pássaros todos voltavam do céu, que desciam para seus lugares, em ponto, nas frescas beiras da lagoa – ah, a papeagem no buritizal, que lequelequeia. A ver, e o sol, em pulo de avanço, longe na banda de trás, por cima de matos, rebentava, aquela grandidade. Dia desdobrado.
Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem volvência, até perto de hora do almoço. Mas o terreno aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando menorzinhas, arregaçavam saia no chão. De vir lá, só algum tatu, por mel e mangaba. Depois, se acabavam as mangabaranas e mangabeirinhas. Ali onde o campo largueia. Os urubus em vasto espaceavam. Se acabou o capinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, que mesmo as moitas daquele de prateados feixes, capins assins. Acabava o grameal, naquelas paragens pardas. Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavião-andorim: foi o fim de pássaro que a gente divulgou. Achante, pois, se estava
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas naquela coisa – taperão de tudo, fofo ocado, arrevesso. Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta – feito cabeleira sem cabeça. As-exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente.
Expondo ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi já inteirado no começo; daí só mais aumentava. E o que era para ser. O que é pra ser – são as palavras! Ah, porque. Por quê? Juro que: pontual nos instantes de o raso se pisar, um sujeito dos companheiros, um João Bugre, me disse, ou disse a outro, do meu lado:
– “ ... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o Capiroto...”
Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe.
Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém – então dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas! “... O
Hermógenes tem pautas...” Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo.
A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer?
Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio?
Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.
Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião – areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás.
Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro – no desentender aquilo os cavalos arupanavam. Diadorim – sempre em prumo a cabeça – o sorriso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: “Hê, valentes somos, corruscubas, sobre ninguém – que vamos padecer e morrer por aqui...” Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um vágado – como tonteira de truaca. Havia eu de saber por quê? Acho que provinha de excessos de idéia, pois caminhadas piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, meu medo. Agüentei. Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava – eu ressentia as correias dos correames, os formatos. A com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d’água, da cabaça – eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar os burros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intruji duas coisas, em cruz: que Medeiro Vaz estava insensato? – e que o Hermógenes era pactário! Tomo que essas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz que descansando do meu lado, assim ouvi: – “Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem...” Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o embalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Suçuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir – e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava – era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves – iam como o costume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando – só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de delírios. Os
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava.
De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais – Buritis Altos, cabeceira de vereda – na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria viver ou morrer comigo – que a gente se casasse. Saudade se susteve curta. Desde uns versos:
Buriti, minha palmeira,