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“Que só venha!” – eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-buriti, sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Suçuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda – do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros – esse tem cachoeiras que cantam, e é d’água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: – É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha remeleja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do capitão-da-sala-todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. – “É o cavalheiro-da-sala...” – Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. – “Em minha terra, o nome dessa” – ele disse“é dona-joana... Mas o leite dela é venenoso...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E

todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também?

Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança

– o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, algum, isto é que é, a gente tem devassalar. Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos.

Talmente, também, se carecia de tomar repouso e aguardo.

Por meios e modos, sortimos arranjados animais de montada, arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na Vereda do Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acari, em toda a parte a gente era recebida a bem. Tardou foi para se ter sinal

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era que todos os moradores pertenciam do nosso lado. Medeiro Vaz não maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força, nem consentia em desatinos de seus homens.

Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes. Mas os Hermógenes e os cardões roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça em qualquer povoa) à-toa, renitiam feito peste. Na ocasião, o Hermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram um mundo enorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse, esperasse. Dando meias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro, num Buriti-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e casa. E

guardava munição da gente: mais de dez mil tiros de bala.

Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo Franco – esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar – porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritis ensinam, a gente varava para após. Se passava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vau da Mata

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo, o São Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beira desse, até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser o importante, que se tinha de estudar, era avançar depressa nas boas passagens nas divisas, quando militar vinha cismado empurrando. É preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho.

Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava até no Jalapão – quem conhece aquilo? – tabuleiro chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada-homens, mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja – tendo até bandinha-de-música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iam para os diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: “... nos rios...” Uns tocavam jumentos de almocreve, outros carregavam suas coisas –

sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol.

O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequeio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável.

Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa.

Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: –

“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” –

ciente me respondeu.

Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos.

O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela-d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana.

Senhor vê, no escuro, um quebrapeito – e é ele mesmo, já

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.

Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o hospício de doidos, na capital, diz-se que lá ela foi cativa de comer, por armagem de sonda.

Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho que foi bom.

Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-NãoHá, para estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Se não, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha.

Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencama, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?!

Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há.

Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O

inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor...

De Araçuaí, eu trouxe uma pedra de topázio.

Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados?

De mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher! Ou conto mal? Reconto.

Ao que nós acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de várzea. Até, lá era favorável de defender que os cavalos se espairassem – por ter manga natural, onde se encostar, e currais falsos, de pegar gado brabeza. Natureza bonita, o capim macio.

Me revejo, de tudo, daquele dia-a-dia. Diadorim restava um tempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava para ele. “Seja por ser, Riobaldo, que em breve rompemos adiante. Desta vez, a gente tange guerra...” – pronunciou, a prazer, como sempre quando assim, em véspera. Mas balançou a cabaça: tinha um trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro, sem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas serventia, só para produzir gastura na gente. – “Bota isso fora, Diadorim!” – eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada de capricho, mas que agora sendo para nojo. E, como me deu sede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra nunca, e fomos apanhar água num poço, que ele me disse. Era por esconso por uma palmeira – duma de nome que não sei, de curta altura, mas regrossa, e com cheias palmas, reviradas para cima e depois para baixo, até pousar no chão com as pontas.

Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam um coberto, remedando choupã de índio. Assino que foi de avistarem umas assim que os bugres acharam idéia de formar suas tocas. Aí a gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava. O poço abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato, ali intrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum azul que haja – que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi forte.

Are sens