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Meu era um alívio. Mesmo não duvidei de meu menos valer: alguém lá tem a feição do rosto igualzinha à minha? Eh, de primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje, eu desconheço o arruído rumor das pancadas dele. Diadorim veio para perto de mim, falou coisas de admiração, muito de afeto leal. Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora, mel de melhor. Eu precisava. Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos? Bobéia, minha. E como é que havia de ser possível?

Hem?!

Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses –

Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer.

Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas, em lei de caborje – invisível no sobrenatural –

chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste!

Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...

Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça?

Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem – deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...

A que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bem de seu dispor, não dava altura. A tento de se acertar nos primeiros rumos de se mexer, ele me chamou, mais João Concliz. – “Os Judas estão aqui mesmo, de nós a umas quinze léguas, e sabem da gente. Deveras atacar, não atacam, com este tempo de todas chuvas e ribeirões cheios. Mas vão fechando modo de rodear a gente, de menos longe, porque a quantidade deles é à farta... Recurso, que eu acho, é dois: ou se fugir para o chapadão, enquanto tempo – mas é perder toda esperança e diminuir da vergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar um caminho por entremeio deles: se vai para a outra banda do Rio, caçar João Goanhá e os outros companheiros... Mais ainda não sei, quero toda razoável opinião.” Assim ele, Marcelino Pampa, disse. – “Mas, se souberem a notícia que Medeiro Vaz morreu, hoje mesmo é capaz que sejam de vir em riba de nós...” – foi o que João Concliz achou; e estava muito certo. Eu não atinava com o que dizer, as confusões dessas horas me encostavam. O

que era, na situação, que Medeiro Vaz havia de fazer? E Joca

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ramiro? E Só Candelário? Ao esmo, esses pensamentos em mim. Ai de, foi que reconheci como súcia de homens carece de uma completa cabeça. Comandante é preciso, para aliviar os aflitos, para salvar a idéia da gente de perturbações desconformes. Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum meio-termo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira, debulhando. Também, logo depois, depois de muitos silêncios e poucas palavras, Marcelino Pampa resolveu que, de tarde, nossa conversa ia ter repetição. Atontados, três.

Dali, fui para perto de Diadorim. – “Riobaldo,” – ele mal disse – “você está vendo que não temos remédio...” Aí, esbarrou, pensou um tempo, com uma mão por cima da outra.

– “E vocês, que foi que determinaram de se fazer?” – me perguntou. Respondi: – “Hoje de tarde é que se toma decisão, Diadorim. Você está mal satisfeito?” Ele endireitou o corpo.

Foi, falou: – “Sei o meu. Cá por mim, isso tudo pouco adianta.

Quente quero poder chegar junto dum dos Judas, para terminar!” Eu sabia que ele falava coisas de pelejar por cumprir.

Eu tinha mais cansaço, mais tristeza. – “Quem sabe, se... Para ter jeito de chegar perto deles, até se não era melhor...” – assim ele desabafou, em trago; e recolhido num estado de segredo. Por seus grandes olhos, onde aquilo redondeou, cri que armasse

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas agarrar o comando, por meio de acender o bando todo em revolta. Qualquer loucura, semelhante, era a dele. Mas, não; mais disse: – “Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu e fez...”

Era. Gostei, em cheio, de escutar isso, soprante. Ah, porém, estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!

Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez reunidos – Marcelino Pampa, eu e João Concliz, – não se teve nem o tempo de principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o chegar, o riscar, o desapeio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim o Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado.

Que vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia de ter mais de uns quinze anos, e as feições dele mudavam-de mestre pavor. – “Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa.

Pegamos. Aí ele tem grande coisa pra contar...” – e empurraram um pouco o vaqueirinho. De medo – a gente olhava para ele – e de nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de ar, e soluceou:

– “É um homem... Só sei... É um homem...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Te acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo. Aonde é que está indo?” – Marcelino Pampa regrou.

– “É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio Paracatu, numa balsa de buriti...”

– “Que foi mais que o homem fez?” – então João Concliz perguntou. – “Deu fogo... O homem, com mais cinco homens...

Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Os outros eram montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaram três mortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam a cavalo... O

homem e os cinco dele estão a pé. Homem terrível... Falou que vai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, no rancho.

Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me deram naca de carne...”

– “Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros dizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que ele tem?”

– “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os outros falam e tratam: `Deputado’. Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... – ‘Estávamos em jejum de briga...’ – ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogo feito

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... Desceram... Nem cavalo eles não têm...”

– “É ele! Mas é ele! Só pode ser...” – aí alguém lembrou. –

“E é. E, então, está do nosso lado!” – outro completou. –

“Temos de mandar por ele...” – foi a palavra de Marcelino Pampa. – “Onde é que estará? Na Pavoã? Alguém tem de ir lá...” – “É ele... É ver a vida: quem pensava? E é homem danado, zuretado...” – “Está a favor da gente... E ele sabe guerrear...” E era. Repegava a chuva, trozante, mas mesmo assim o Quipes e Cavalcânti montaram e saíram por ele, da Pavoã no rumo. De certo não acharam fácil, pois até à hora de escurecer não tinham aparecido. Mas: aquele homem, para que o senhor saiba, – aquele homem: era Zé Bebelo. E, na noite, ninguém não dormiu direito, em nosso campo. De manhã, com uma braça de sol, ele chegou. Dia da abelha branca.

De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo, acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais.

Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras.

Marcelino Pampa caminhou ao encontro dele; seguinte de nosso comandante, nós formávamos. Valia ver. Essas cerimônias.

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