"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Add to favorite ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um gesto, me cortou de fazer mais perguntas. Às armas. Diadorim ia, para aquilo, prezável de passeata. Ah, uma coisa não referi ao senhor.

Que era que, aquele tempo, no arranchamento do Hermógenes, minha amizade com Diadorim estava sendo feito água que corre em pedra, sem pepa de barro nem pó de turvação. Da voz de homens e do tinir de armas em má véspera, não se podia deixar de receber um lufo de dureza, de mais próprio respeito, e muita coisinha se empequenava. – “Zé Bebelo é arisco de aviso, Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em esconso, deve de ter outra tropa de guerra, prontos para virem dar retaguarda. Eu sei bem – essa a norma dele... Carece de prevenir o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos...” – eu não retive, e disse. – “Eles sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa...” –

Diadorim me respondeu. E eu estava sabendo que eu já dizer aquilp era traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros. Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era. Agora, depois mais do tudo que houve, não foi?

Agarrei minha mochila, comi fria a minha jacuba. Tudo estava sendo determinado decidido, até o que a gente tinha de fazer depois. Aí João Goanhá apartava o pessoal em punhados

– 275 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de quinze ou vinte: cada um desses, acabado o fogo, devia de se reunir em lugar certo comum. Daquela hora em diante, íamos ter de brigar em pequenas quantidades. Pelas caras dos homens, eu via que estavam satisfeitos, parecia muito e pouco. Com regozijo, um golinho se bebeu. – “Toma este breve, Riobaldo. Foi minha mãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu carrego dois...”

Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava rifle de três canos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nunca tinha dado fé daquele Feijó? – “A vamos. Hoje se faz o que não se faz...” –

um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus. Quem quisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos, acompanhavam. Outros ainda comiam, zampando, limpavam a boca com as duas mãos. – “Não é medo não, amigos, é o trivial do corpo!” – explicavam alguns, que ainda careciam de ir por suas necessidades. Restantes risadas davam. Ao que faltava nem meia-hora para o sol ir entrando. Daquele lugar, vazio de moradas e de terras lavradias, a gente ouvia o gugo da juriti como um chamado acabado, junto com lobo guará já dando gritos de penitência. – “Presta uma demão, aqui...” Ajudei. Era um montesclarense – acho que o cujo nome esqueci – que queria passar tiras de pano, por sola das alpercatas e peito dos pés, reforçando.

Terminou, e fez os passos de dança, maneiro nas juntas,

– 276 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas assobiava. Aquele rapaz pensava alguma coisa? – “Riobaldo?” –

Diadorim me disse – “arruma jeito de mudar de lugar, na hora, sempre que puder. E põe cautela: homem rasteja por entre as moitas, e vem pular nas costas da gente, relampeando faca.”

Diadorim sorria sério. Um outro me esbarrou, quando passava.

Era o Delfim, violeiro. Onde era que a viola ele ia poder guardar?

Eu apertei a mão de Diadorim, e queria sair, andar, gastar.

Conto que chegou o Hermógenes. A voz do Hermógenes, dando ordens de guerra – já disse ao senhor? – ficava clara e correta; um podia dizer: que até ficava. Ao menos ele sabia aonde ia levar a gente, e o que queria. Deu resumo do traço.

Que todos cumprissem, que todos soubessem! A partida dos zebebelos estava com posição no Alto dos Angicos –

tabuleirinho de chã. Podiam ter espalhado sentinelas muito longe, até na beira do córrego Dinho, ou para lá, em volta, nas contravertentes. Mas, disso, logo se ia saber, porqual os espias nossos rondavam. O que se tinha era de chegar, já como o escuro, e engatinhar às ladeiras, no durado da noite, na arte vagarosa. Só íamos abrir fogo, de surpresa, no clarearzinho da madrugada. Cada um de seu Ponto melhor. Tudo tinha de valer Pm cnnsagato e finice, até se carecia de respirar só por metade.

Se algum topasse com inimigos, por má-sorte, antes, ele que

– 277 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas escorresse como pudesse, ou dependesse na faca: atirar com arma é que não podendo. Sendo que podendo, mas só depois do Hermógenes – que era quem era o dono: – o primeiro tiro ele dava. Como cada qual tinha de atirar com sangue-frio, de matar exato. Porque nosso prazo seria acabar com todos, com brevidade; mais antes que outros deles pudessem vir, para um reforço. Mesmo assim, Titão Passos ia com uns trinta companheiros reguardar o caminho de vinda, à emboscada, num tombador de pedra. Já vai que o Hermógenes explicava, devagar, e tudo repetia, com paciência: o dever absoluto era que até o mais tonto aprendesse, e estava definido o rumo de tarefa por onde cada um devia de se pôr no chão e começar a engatinhar, virada arriba. Mas, eu, catei o sentido de tudo já na primeira razão, e, de cada vez que ele repetia, eu reproduzia – em minha idéia os acontecimentos se passando, eu já estava lá, e rastejava, me aprontava. Peguei a sentir. Me fiz fácil nas armas.

Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O

Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras, mochilão, rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem.

Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentir ao

– 278 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que vida é : é para se envergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro.

Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu, Riobaldo, eu!”

Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei nele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca Ramiro!...” A arga que em mim roncou era um despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio

– 279 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida.

Aí, ele tinha que eu escolhesse os para vir juntos. Eu? Ele estava me experimentando? E não tardei: – “O Garanço...” – eu disse. – “... e este, aqui!” – completei, para aquele montesclarense apontando. Bem que eu queria também o Feijó; mas deviam de ser só dois, a conta já estava. E Diadorim? – o senhor perguntará. Ah, por Diadorim era que eu não dizia, o pensamento nele me repassava. O tempozinho todo, naquele soflagrante. E estúrdio: eu principalmente não queria Diadorim perto de mim, para as horas. Por quê? Por que, é o que eu mesmo não sabia. Seria que me desvalesse a presença dele comigo, pelos perigos que eu visse virem a ele, no meio do combate; ou seria que a lembrança de ter Diadorim junto, naquilo, me desgostasse, por me enfraquecer, agora eu assim, duro ferro diante do Hermógenes, leão coração? Se sei, sei. Porque era como eu estava. E assim respondi: que então o Garanço e o Montesclarense iam com a gente.

Como saímos, viemos vindo, desfeitos aos dois, aos três, aos sozinhos. Já a já, era noite. Noite da Jaíba dá de uma asada,

– 280 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas uma pancada só. Há-de: que se acostumar com o escuro nos olhos. Conto tudo ao senhor. O caminhar da gente se media em silencioso, nem o das alpercatas não se ouvia. De tantos matos baixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só. Por lá a coruja grande avoa, que sabe bem aonde vai, sabe sem barulho. A quando o vulto dela assombrava em frente da gente no ar, eu fechava os olhos três vezes. O Hermógenes rompia adiante, não dizia palavra. Nem o Garanço também, nem o Montesclarense.

Isso, em meu sentir, eu a eles agradecia. Quem vai morrer e matar, pode ter conversa? Só esses pássaros de pena mole, gerados da noite – tantos bacuraus insensatos: o sebastião que chamava a fêmea, com grandes risadas, pedindo tabaco-bom.

Digo ao senhor o que eu ia pensando: em nada. Só esforçava tenção numa coisa: que era que devia de guardar tenência simples e constância miúda, esperando a novidade de cada momento.

Minha pessoa tomava para mim um valor enorme. Aquele pássaro mede-léguas erguia vôo de pousado no meio da estrada, toda vez ia se abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, conforme de comum esses fazem. Bobice dele – não via que o perigo torna a vir, sempre?

Digo tudo, disse: matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não pensava. Descarecia. Era assim: eu ia indo,

– 281 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Com meia-légua andada, por um trilho. É preciso não roçar forte nas ramagens, não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jura sabença: o que preza o chão – o pé que adivinha. A gente imagina uns buracões disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhas estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor: a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu mais pensei. No seguinte: como é que curiango canta. Que o curiango canta é: Curí-angú!

A obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes esbarrou. Con chegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros. Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara. Cada um com punhal a ponto, atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras; mais para baixo, sabíamos de uma estiva, mas lá se temia que tivessem botado sentinelas. Ali era o lugar pior: um estremecimento me desceu, senti o espaço da minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No outro lado, o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás

– 282 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir horas, dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego.

Acender cigarro e pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que Hermógenes tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que a mosquitada não deixava? Mas não seria de mim que pudesse ferrar no sono assim perto daquele homem, príncipe das tantas maldades. O que eu queria era que tudo sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de terminada. –

“Tá aqui, toma...” – ouvi. Era o Hermógenes, um taco de fumo me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar.

Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í.

Daí, os pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite durava.

– 283 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Haja de contar o que foi – o todo de se escorregar para cima a encosta – até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de ser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem se arraiga em terra, no capim, no chão, e vai, vai – sendo serepente – de gato-em-caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo, semelhante fosse nadando; cotovelo e joelho é que transpõem. Tudo um ai de vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não vale arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, por mais de.

Are sens