Ora, quando se é proprietário e rico!. .
—
Isso sim! Parece que não é nada: mas uma pintura numa porta, uma janela nova, uma sala forrada de papel, um soalho, e isto e aquilo, e lá se vão oitocentos mil réis... Enfim!. .
Levantou-se, e despedindo-se:
—
Eu espero que aquele vadio se não demore muito. .
—
Se a estanqueira der licença. . Ficou a passear na sala, nervosa, com aquela ideia. Deixar-se namorar pela estanqueira, e a mulher do delegado, e as outras!. . Decerto, tinha confiança nele, mas os homens!... De repente representou-lhe a estanqueira prendendo-o nos braços detrás do balcão, ou Jorge beijando, nalguma entrevista, de noite, o colo bonito da mulher do delegado!. . E tumultuosamente apareceram-lhe todas as razões que provavam irrecusavelmente a traição de Jorge: estava há dois meses fora! Sentia-se cansado da sua viuvez! Encontrava uma mulher bonita! Tomava aquilo como um prazer passageiro, sem importância!. . Que infame! Resolveu escrever-lhe uma carta digna e ofendida, que viesse imediatamente — ou que partia ela —
Entrou no quarto, muito excitada. A fotografia de Jorge, que ela tirara na véspera do saco de marroquim, ficara no toucador. Pôs-se a olhá-la: não admirava que o namorassem; era bonito, era amável.. Veio-lhe uma onda de ciúme, que lhe obscureceu o olhar; se ele a enganasse, se tivesse a certeza da
"mais pequena coisa" — separava-se, recolhia-se a um convento, morria decerto, matava-o!...
—
Minha senhora — veio dizer Joana —, é um galego com esta carta. Está à espera da resposta.
Que espanto! Era de Juliana!
Escrita em papel pautado, numa letra medonha, eriçada de erros de ortografia, dizia:
Minha senhora.
Bem sei que fui imprudente, o que a senhora deve atribuir tanto à minha desgraça como àfalta de saúde, o que às vezes faz que se tenham génios repentinos. Mas se a senhora querque eu volte e faça o serviço como dantes — ao qual creio que a senhora não pode opor-se,terei muito gosto em ser agradável na certeza que nunca mais se falará em tal até que asenhora queira, e cumpra o que prometeu. Prometo fazer o meu serviço, e desejo que asenhora esteja por isto pois que é para bem de todos. Pois que foi génio e naturalmente todostêm os seus repentes, e com isto não canso mais e souServa muito obediente
a criada
Juliana coiceiro Tavira.
Ficou com a carta na mão, sem resolução. A sua primeira vontade foi dizer —
"não!" Tornar a recebê-la, vê-la, com a sua face horrível, a cuia enorme! Saber que ela tinha no bolso a sua carta, a sua desonra, e chamá-la, pedir-lhe água, a lamparina, ser servida por ela! Não! Mas veio-lhe um terror; se recusasse irritava a criatura; Deus sabe o que faria! Estava nas mãos dela; devia passar por tudo. Era o seu castigo.. Hesitou ainda um momento:
—
Que sim, que venha, é a resposta.
Juliana veio com efeito às oito horas. Subiu pé ante pé para o sótão, pôs o fato de casa e as chinelas, e desceu para o quarto dos engomados, onde Joana sentada num tapete costurava, à luz do petróleo.
Joana, muito curiosa, acabrunhou-a logo de perguntas: onde estivera? O que tinha acontecido? porque não dera notícias? — Juliana contou que fora a uma visita a uma amiga, à Calçada do Marquês de Abrantes, e que de repente lhe dera um flato, e a dor. . Não quis mandar dizer, porque imaginara que poderia vir. Mas qual! Estivera dia e meio de cama. .
Quis saber então o que tinha feito a senhora, se saíra, quem estivera. .
—
A senhora tem andado a modo incomodada — disse Joana.
—
É do tempo — observou Juliana. — Tinha trazido a sua costura, e ambas caladas continuaram o serão.
As dez horas Luísa ouviu bater devagarinho à porta do quarto. Era ela, decerto!
—
Entre. .
A voz de Juliana disse muito naturalmente:
—
Está o chá na mesa.
Mas Luísa não se decidia a ir à sala, com medo, horror de a ver! Deu voltas no quarto, demorou-se; foi enfim, toda trémula. Juliana vinha justamente no corredor; encolheu-se contra a parede, com respeito, disse:
—
Quer que vá pôr a lamparina, minha senhora? Luísa fez que sim com a cabeça, sem a olhar.
Quando voltou ao quarto Juliana enchia o jarro; e depois de ter aberto a cama, cerrado as portas, quase em pontas de pés:
—
A senhora não precisa mais nada? — perguntou.
—
Não.
—
Muito boa noite, minha senhora. E não houve outra palavra mais.
—
"Parece um sonho!" — pensava Luísa, ao despir-se melancolicamente.
—
Esta criatura, com as minhas cartas, instalada na minha casa para me torturar, me roubar!" — Como se achava ela, Luísa, naquela situação? Nem sabia. As coisas tinham vindo tão bruscamente, com a precipitação furiosa de uma borrasca, que estala! Não tivera tempo de raciocinar, de se defender; fora embrulhada; e ali estava, quase sem dar fé, na sua casa sob a dominação da sua criada! Ah! Se tivesse falado a Sebastião! Tinha agora o dinheiro, decerto, notas, ouro. . Com que frenesi lho arremessaria,. a expulsaria, e a arca, e os trapos, e a cuia!. . — Jurou a si própria falar a Sebastião, dizer tudo! Iria mesmo à casa dele, para o impressionar mais!
Daí a pouco, quebrada da agitação do dia, adormecera — e sonhava que um estranho pássaro negro lhe entrara no quarto, fazendo uma ventania, com as suas asas pretas de morcego: era Juliana! Corria aterrada ao escritório, gritando: "Jorge!" Mas não via nem livros, nem estante, nem mesa; havia uma armação reles , de loja de tabaco, e por trás do balcão, Jorge acariciava sobre os joelhos uma bela mulher de formas robustas, em camisa de estopa, que perguntava com uma voz desfalecida de voluptuosidade e os olhos afogados em paixão: — "Brejeiros ou de Xabregas?" — Fugia então de casa indignada, e, através de sucessos confusos, via-se ao lado de Basílio, numa rua sem fim, onde os palácios tinham fachadas de catedrais, e as carruagens rolavam ricamente com uma pompa de cortejo. Contava soluçando a Basílio a traição de Jorge. E Basílio, saltitando em volta dela com requebros de palhaço, repenicava uma viola, e cantava: