A senhora por quem é perdoe, que depois estava doida! Estava com a cabeça perdida, não tinha dormido nada toda a noite. Fiquei mais aflita. .
Luísa não respondeu, entrou na sala. Sebastião, que vinha jantar, tocava a serenata de D. Juan — e apenas ela apareceu:
—
De onde vem, tão pálida?
—
Debilidade, Sebastião, venho da igreja. .
Jorge entrava do escritório com uns papéis na mão:
—
Da igreja! — exclamou. — Que horror!
CAPÍTULO XI
Foi por esse tempo que, num sábado, o Diário do Governo publicou a nomeação do Conselheiro Acácio ao grau de Cavaleiro da Ordem de São Tiago, atendendo aos seus grandes merecimentos literários, às obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes..
Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o Conselheiro, depois de os abraçar um por um, numa pressão nervosa e comovida, caiu no sofá, exausto, e murmurou:
—
Não o esperava tão cedo da real munificência! Não o esperava tão cedo!
— e acrescentou, pondo a mão espalmada sobre o peito: — Direi como o filósofo: "Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!"
E convidou logo Jorge, Sebastião e Julião para um jantar na quinta-feira, um modesto jantar de rapazes, no seu humilde tugúrio, para festejarem a régia graça.
—
Às cinco e meia, meus bons amigos!
Na quinta-feira, os três, que se tinham encontrado na Casa Havanesa, eram introduzidos por uma rapariguita vesga, suja como um esfregão, na sala do Conselheiro. Um vasto canapé de damasco amarelo ocupava a parede do fundo, tendo aos pés um tapete onde um chileno roxo caçava ao laço um
búfalo cor de chocolate; por cima uma pintura tratada a tons cor de carne, e cheia de corpos nus cobertos de capacetes, representava o valente Aquiles arrastando Heitor em torno dos muros de Troia. Um piano de cauda, mudo e triste sob a sua capa de baeta verde, enchia o intervalo das duas janelas. Sobre uma mesa de jogo, entre dois castiçais de prata, uma galguinha de vidro transparente galopava; e o objeto em que se sentia mais o calor do uso era uma caixa de música de dezoito peças!
O Conselheiro recebeu-os, com o hábito de São Tiago sobre a lapela do fraque preto. Havia outro sujeito na sala, o Sr. Alves Coutinho. Era picado das bexigas, tinha a cabeça muito enterrada nos ombros; quando o seu olhar parvo se fixava nas pessoas, com pasmo, o seu bigode pelado arreganhava-se logo por hábito, num sorriso alvar que mostrava uma boca medonha cheia de dentes podres; falava pouco, esfregava sempre as mãos, concordava em tudo; havia nele o ar de um deboche banal e de um embrutecimento antigo. Era um empregado do ministério do Reino, ilustre pela sua boa letra.
Daí a pouco entrou a figura conhecida do Saavedra, redator do Século. A sua face branca parecia mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina; as lunetas de ouro acentuavam o seu tom oficial; trazia ainda no queixo o pó-de-arroz, que lhe pusera momentos antes o barbeiro; e a mão, que escrevia tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada numa luva nova, cor de gema de ovo.
—
Estamos todos! — disse com júbilo o Conselheiro. E curvando-se: —
Bem-vindos, meus amigos! Estamos talvez mais à vontade no meu quarto de estudo! Por aqui. Há um degrau, cuidado! Eis o meu Sancra Sancrorum!
Numa saleta muito espanejada a que as cortinas de cassa, a luz de duas janelas de peitoril e o papel claro davam um aspeto alvadio, estava a larga escrivaninha de trabalho, com um tinteiro de prata, os lápis muito aparados, as réguas bem dispostas. Via-se o sinete de armas do Conselheiro, pousado sobre a Carta Constitucional ricamente encadernada. Encaixilhada, na parede, pendia a carta régia que o nomeara Conselheiro; em frente uma litografia de El-rei; e sobre uma mesa era eminente o busto em gesso de Rodrigo da Fonseca Magalhães, tendo no alto da cabeça uma coroa de perpétuas — que ao mesmo tempo o glorificava e o chorava.
Julião pusera-se logo a examinar a livraria.
—
Prezo-me de ter os autores mais ilustres, amigo Zuzarte! — disse com orgulho o Conselheiro.
Mostrou-lhe a História do consulado e do império, as obras de Delille, o Dicionário da conversa, a ediçãozinha bojuda da Enciclopédia Roret, o Parnaso lusitano. Falou dos seus trabalhos; e acrescentou que, vendo ali reunidas pessoas de tão subida ilustração, desejaria muito ler-lhes algumas das provas que estava revendo do seu novo livro — Descrição das principais
cidades do reino e os seus estabelecimentos, para ouvir a opinião deles, desassombrada e severa!
—
Se não acham maçada. .
—
Prazer, Conselheiro! Prazer!
Escolheu então, "como mais própria para dar ideia da importância do trabalho", a página relativa a Coimbra. Assoou-se, colocou-se no meio da saleta, de pé, com as folhas na mão, e, com uma voz cheia, gestos pausados, leu:
. . Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca nos seus aposentos, está asábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe de amor, o saudosoMondego. E nos seus bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e outras aves canorassoltam seus melancólicos trilos. Quando vos aproximais pela estrada de Lisboa, ondeoutrora uma bem organizada mala-posta fazia o serviço que o progresso hoje encarregou àfumegante locomotiva, vede-la branquejando, coroada do edifício imponente da Universidade,asilo da sabedoria. Lá campeia a torre com o sino, que na sua folgazã linguagem amocidade estudiosa chama "a cabra". Para além logo uma copada árvore vos atrai as vistas:é a celebrada árvore dos Dórias, que dilata seus seculares ramos no jardim de um dosmembros desta respeitável família. E avistais logo, sentados nos parapeitos da antiga ponte,nos seus inocentes recreios, os briosos moços, esperança da pátria, ou requebrando galanteios
com as ternas camponesas que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo nassuas mentes os problemas mais árduos do seus bem elaborados compêndios. .
—
Está a sopa na mesa — veio dizer uma criada, de avental branco, muito nutrida.