Luísa via-o mentir, olhando-o com adoração.
—
E a Joana? — perguntou Jorge de repente. Luísa, sem se perturbar, respondeu:
—
Ah, esqueci-me dizer-te.. Tinha pedido licença para ir ver uma tia que está muito mal, para os lados de Belas.. Diz que volta amanhã. . Mais uma gota de, chá, Sebastião. .
Esqueceram-se depois de mandar a Vicência — e ninguém velou a morta.
CAPÍTULO XIV
Luísa passou a noite às voltas, com febre. Jorge de madrugada ficou assustado da frequência do seu pulso e do calor seco da pele.
Ele mesmo muito nervoso, não pudera dormir.
O quarto, onde se não acendera luz havia muito, tinha uma frialdade desabitada na parede, junto ao teto, havia manchas de humidade; e a cama antiga de colunas torneadas sem cortinados, o velho trenó do século passado com o seu espelho embaciado davam, à luz bruxuleante da lamparina, um sentimento triste de convivências extintas. O achar-se ali com a sua mulher, numa cama alheia, trazia-lhe, sem saber porquê, uma vaga saudade; parecia-lhe que se dera na sua vida uma alteração brusca — e que, semelhante a um rio a que se muda o leito, a sua existência, desde essa noite, começaria a correr entre aspetos diferentes. O nordeste fazia bater os caixilhos da vidraça, e uivava encanado na rua.
Pela manhã, Luísa não se pôde levantar.
Julião, chamado à pressa, tranquilizou-os:
—
É uma febrezita nervosa. Quer sossego, não vale nada. Foi o medozinho de ontem, hem?
—
Sonhei toda a noite com ela — disse Luísa. — Que tinha ressuscitado...
Que horror!
—
Ah! Pode estar sossegada. . E já a aviaram, a mulher?
—
O Sebastião lá anda com a maçada — disse Jorge. — E eu vou dar uma vista de olhos.
Na rua já se sabia a morte da Tripa Velha.
A mulher que a veio amortalhar, uma matrona muito picada das bexigas com os olhos avermelhados da paixão da águardente, era conhecida da Sra. Helena.
Estiveram um momento a palrar ao sol, à porta do estanque:
—
Muito que fazer agora, Sra. Margarida, hem?
—
Bastante, bastante, Sra. Helena — disse a amortalhadeira com a voz um pouco rouca. — No inverno sempre há mais obra. Mas tudo gente velha, com os frios. Nem um corpinho bonito para vestir..
A Sra. Margarida tinha predileções artísticas. Gostava de um bonito corpo de dezoito anos, uma mocinha fresca para lavar, escarolar, enfeitar. . Entrouxava à má cara a gente velha. Mas com as raparigas novas esmerava-se: acatitava as pregas da mortalha; calculava o chique de uma flor, de um laço; trabalhava com os requintes ajanotados de uma modista do sepulcro.
A estanqueira contou-lhe muitas particularidades sobre a Juliana, os favores dos patrões, as tafularias dela, os luxos do quarto tapetado. . A Sra. Margarida
dizia-se "banzada". E para quem agora iria tudo aquilo? — perguntavam. — A Tripa Velha não tinha parentes...
—
Era uma riqueza para a minha Antoninha! — disse a amortalhadeira traçando o xale com tristeza.
—
Como vai ela, a pequena?..
—
Aquilo vai mal, Sra. Helena. Aquela cabeça doida! — E exalando a sua dor com loquacidade: — Deixar o brasileiro que a trazia nas palminhas. . E
por quem? Por aquele desalmado, que lhe come tudo, que já lhe arranjou um filho e que a derreia com pau... Mas então, as raparigas são assim. . Vão atrás do palmo de cara. . Que ele é bonito rapaz! Mas um bêbedo!. . Coitada!. . Pois vou vestir a boneca, Sra. Helena. — E entrou na casa compungidamente.
O padre já chegara também. Estava na sala com Sebastião, que conhecia de Almada, e falava de lavoura, de enxertos, das regas, numa voz grossa —
passando, com um gesto lento da sua mão cabeluda, o lenço enrolado por debaixo do nariz. As janelas em toda a casa estavam abertas ao sol muito doce. Os canários chilreavam.