Estimo as melhoras. Deus há de permitir que não seja nada. .
O delírio com efeito daí a uma hora acalmou; — e Luísa caiu numa sonolência prostrada com gemidos fracos, que saíam do seus lábios como a lamentação interior da vida vencida.
Jorge tinha então dito a Sebastião que desejava chamar o Dr. Caminha. Era um médico velho que tratara a sua mãe, e que curara Luísa da pneumonia, no segundo ano de casada. Jorge conservara uma admiração agradecida por aquela reputação antiquada; e agora a sua esperança voltava-se sofregamente para ele, ansiando pela sua presença como pela aparição de um santo.
Julião condescendeu logo. Até estimava! E Sebastião desceu correndo, para ir a casa do Dr. Caminha.
Luísa, que saíra um momento do seu torpor, sentiu-os falar baixo. A sua voz extinta chamou Jorge:
—
Cortaram-me o cabelo. . — murmurou tristemente.
—
É para te fazer bem — disse-lhe Jorge, quase tão agonizante como ela.
— Cresce logo. Até te vem melhor. .
—
Ela não respondeu; duas lágrimas silenciosas, correram-lhe pelos cantos dos olhos.
Devia ser a última sensação; a prostração comatosa ia-a imobilizando, apenas a sua cabeça rolava num movimento doce e vagaroso sobre o travesseiro, gemendo sempre com um cansaço triste; a pele empalidecia como um vidro de janela, por trás do qual lentamente uma luz se apaga; e mesmo os ruídos da rua que começavam não a impressionavam, como se fossem muito distantes e abafados em algodão.
Ao meio-dia D. Felicidade apareceu. Ficou petrificada quando a viu tão mal; e ela que a vinha buscar para irem à Encarnação, talvez às lojas! Tirou logo o chapéu, instalou-se; fez arranjar a alcova, tirar as bacias, os velhos sinapismos que arrastavam, compor a cama — porque não havia pior para um doente que desarranjo no quarto; e muito corajosamente animava Jorge.
Uma carruagem parou à porta. Era o Dr. Caminha, enfim!. . Entrou atabafado no seu cachené de quadrados verdes e pretos queixando-se muito do frio; — e tirando devagar as grossas luvas de casimira, que pós dentro do chapéu metodicamente, adiantou-se para a alcova com um passo cadenciado, acamando com a mão as suas repas grisalhas já muito coladas ao crânio pela escova.
Julião e ele ficaram sós na alcova.
No quarto os outros esperavam calados, ao pé de Jorge, pálido como cera, com os olhos vermelhos como carvões.
—
Vai-se-lhe pôr um cáustico na nuca — veio dizer Julião.
Jorge devorava com o olhar ansioso o Dr. Caminha, que se pusera a calçar tranquilamente as suas luvas de casimira, dizendo:
—
Vamos a ver com o cáustico. Não está bem. . Mas há ainda pior. E eu volto, meu amigo, eu volto.
O cáustico foi inútil. Não o sentia, imóvel e branca, com as feições crispadas; e tremuras passaram-lhe de repente nos nervos da face como vibrações fugitivas.
—
Está perdida — disse Julião baixo a Sebastião.
D. Felicidade ficou muito aterrada, falou logo nos sacramentos.
—
Para quê? — resmungou Julião impaciente.
Mas D. Felicidade declarou que tinha escrúpulos, que era um pecado mortal; e chamando Jorge para o vão da janela, toda trémula:
—
Jorge, não se assuste, mas seria bom pensar nos sacramentos. .
Ele murmurava como assombrado:
—
Os sacramentos!
Julião chegou-se bruscamente, e quase zangado:
—
Nada de tolices! Qual sacramentos! Para quê? Ela nem ouve, nem compreende, nem sente. E necessário deitar-lhe outro cáustico, talvez ventosas, e é o que é! Isso é que são os sacramentos!
Mas D. Felicidade escandalizada, muito abalada, começou a chorar.
Esqueciam Deus, e em Deus é que está o remédio! — dizia, assoando-se com estrondo.
—