Luísa agitava-se no leito, apertando as mãos na cabeça, torturada pela dor crescente, cheia de sede.
Mariana acabava de arrumar em pontas de pés, vagamente assombrada daquela casa, onde só vira desgosto e doença; mas só o pousar subtil dos seus passos fazia sofrer Luísa, como se fossem marteladas sobre o crânio.
Julião não tardou; logo da porta do quarto, o aspeto dela inquietou-o.
Acendeu um fósforo, aproximou-lho do rosto; e aquela luz fez-lhe dar um grito como se um ferro frio lhe trespassasse a cabeça.
Os olhos dilatados tinham um reluzir metálico. Conservava-se muito quieta, porque o gesto mais lento lhe dava na nuca dores penetrantes que a dilaceravam. Só de vez em quando sorria para Jorge com uma expressão de aflição serena e muda.
Julião fez logo pôr três travesseiros, para lhe conservar a cabeça alta. Fora caía o crepúsculo húmido. Andavam em bicos de pés, com cuidado; e mesmo tiraram o relógio da parede para afastar o tique-taque monótono. Ela começava agora a murmurar sons cansados, e a voltar-se com movimentos bruscos que lhe arrancavam gritos; ou imóvel gemia de um modo contínuo e
angustioso. Tinham-lhe envolvido as pernas num longo sinapismo; mas não o sentia. Pelas nove horas começou a delirar; a língua tornara-se-lhe branca e dura, como de gesso sujo.
Julião fez logo aplicar na cabeça compressas de água fria. Mas o delírio exacerbava-se.
Ora tinha um murmúrio espesso, um vago rosnar modorrento — onde os nomes de Leopoldina, de Jorge, de Basílio voltavam incessantemente; depois debatia-se, esgarçava a camisa com as mãos; e, arqueando-se, os seus olhos rolavam, como largos bugalhos prateados onde a pupila se sumia.
Sossegava mais; dava risadinhas de uma doçura idiota; tinha gestos lentos sobre o lençol, que aconchegavam e acariciavam, como num gozo tépido; depois começava a respirar ansiosamente, vinham-lhe expressões torturadas de terror, queria enterrar-se nos travesseiros e nos colchões, fugindo a aspetos pavorosos; punha-se então a apertar a cabeça freneticamente, pedia que lha abrissem, que a tinha cheia de pedras, que tivessem piedade dela! — e fios de lágrimas corriam-lhe pelo rosto. — Não sentia os sinapismos; expunham-lhe agora os pés nus ao vapor de água a ferver, carregada de mostarda; um cheiro acre adstringia o ar do quarto. Jorge falava-lhe com toda a sorte de palavras consoladoras e suplicantes: pedia-lhe que sossegasse, que o conhecesse; mas de repente ela desesperava-se, gritava pela carta, maldizia Juliana — ou então dizia palavras de amor, enumerava somas de dinheiro... Jorge temia que aquele
delírio revelasse tudo a Julião, às criadas; tinha um suor à raiz dos cabelos — e quando ela, um momento, julgando-se no Paraíso — e nas exaltações do adultério, chamou Basílio, pediu champanhe, teve palavras libertinas, Jorge fugiu da alcova alucinado, foi. para a sala às escuras, atirou-se para o divã a soluçar, arrepelou-se, blasfemou.
—
Está em perigo? — perguntou Sebastião.
—
Está — disse Julião. — Se sentisse os sinapismos, ao menos! Mas estas malditas febres cerebrais. .
Calaram-se vendo Jorge entrar na alcova, com o rosto manchado, esguedelhado.
E Julião tomando-o pelo braço, levando-o para fora:
—
Ouve lá, é necessário cortar-lhe o cabelo, e rapar-lhe a cabeça.
Jorge olhou-o com um ar estúpido:
—
O cabelo? — E agarrando-lhe os braços: — Não, Julião, não, hem?
Pode se fazer outra coisa. Tu deves saber. O cabelo não! Não! Isso não, pelo amor de Deus! Ela não está em perigo. Para quê?
Mas aquela massa de cabelo era o diabo, impedia a ação da água!
—
Amanhã, se for necessário. Amanhã! Espera até amanhã... Obrigado, Julião, obrigado!
Julião consentiu, contrariado. Fazia então humedecer constantemente as compressas da cabeça, e como Mariana trémula, desjeitosa, molhava muito o travesseiro, foi Sebastião que se colocou à cabeceira da cama, toda a noite, espremendo sem cessar uma esponja, de onde a água gotejava lentamente; tinham jarros fora da varanda, na sala, para dar à água uma frialdade gelada. O
delírio alta noite acalmara um pouco. Mas o seu olhar injetado tinha uma aspeto selvagem: as pupilas pareciam apenas um ponto negro.
Jorge, sentado aos pés da cama, com a cabeça entre as mãos, olhava para ela: lembravam-lhe vagamente outras noites de doença assim, quando ela tivera a pneumonia; e melhorara! Até ficara mais linda, com tons de palidez que lhe adoçavam a expressão! Iriam para o campo quando ela convalescesse; alugaria uma casinha; voltaria à noite no ônibus, e vê-la-ia de longe na estrada vindo ao seu encontro, com um vestido claro, na tarde suave!. . Mas ela gemia, ele erguia os olhos sobressaltado; e não lhe parecia a mesma; afigurava-se-lhe que se ia dissipando, desaparecendo naquele ar de febre que enchia a alcova, no silêncio mórbido da noite, e no cheiro da mostarda. Um soluço sacudia-o, e recaía na sua imobilidade.
Joana, em cima, rezava. As velas, com uma chama alta e direita, extinguiam-se.
Enfim uma vaga claridade desenhou nos transparentes brancos os caixilhos da vidraça. Amanhecia. Jorge ergueu-se, foi olhar para a rua. Não chovia; a
calçada secava. O ar tinha uma vaga cor de aço. Tudo dormia; e uma toalha, esquecida à janela das Azevedos, agitava-se ao vento frio, silenciosamente.
Quando entrou na alcova Luísa falava com uma voz extinta; sentia muito vagamente os sinapismos, mas a dor de cabeça não cessava. Começou a agitar-se — e o delírio dai a pouco voltou. Julião, então, determinou que se lhe rapasse o cabelo.
Sebastião foi acordar um barbeiro na Rua da Escola — que veio logo, com um ar transido, a gola de casaco levantada; e batendo o queixo começou a tirar imediatamente de um saco de couro as navalhas, as tesouras, devagar, com as mãos moles da gordura das pomadas.
Jorge foi refugiar-se na sala; parecia-lhe que grandes pedaços mutilados da sua felicidade caíam com aquelas lindas tranças, destruídas às tesouradas; e com a cabeça nas mãos recordava certos penteados que ela usava, noites em que os seus cabelos se tinham desmanchado nas alegrias da paixão, tons com que brilhavam à luz. . Voltou ao quarto, atraído irresistivelmente; sentiu na alcova o ruído seco e metálico das tesouras; sobre a mesa, numa caixa de sabão, estava um velho pincel de barba, entre flocos de espuma. . Chamou Sebastião baixo:
—
Diz-lhe que se avie! Estão-me a matar a fogo lento! É demais. Que ande depressa!
Foi à sala de jantar, errou pela casa; a manhã fria clareava; erguera-se vento, que ia levando, aos pedaços, nuvens de um tom alvadio.
Quando tornou a entrar no quarto, o barbeiro guardava as navalhas com a mesma lentidão mole; e tomando o seu chapéu desabado, saiu em bicos de pés murmurando num tom funerário:
—