Espreitaram.
Estavam apenas, a uma mesa, dois velhos calados em frente dos seus cafés, com os chapéus na cabeça, apoiados a bengalas de cana-da-Índia. O moço dormitava ao fundo. Uma luz crua e intensa enchia a sala estreita.
—
Há um silêncio propicio — disse o Conselheiro.
Ofereceu um café a Julião; e tirando então do bolso uma folha de papel pautado, murmurou: — Infeliz senhora! — Inclinou-se para Julião, e leu: NECROLÓGIO
À MEMÓRIA DA SENHORA D. LUÍSA MENDONÇA DE BRITO
CARVALHO
Rosa de amor, rosa purpúrea e bela,
Quem entre os goivos te esfolhou na campa?
—
É do imortal Garrett! — E continuou com uma voz lenta e lúgubre:
—
". . Mais um anjo que subiu ao céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, na sua inclemente fúria, arremessou mal desabrochada para as trevas do túmulo..."— Olhou Julião para solicitar a sua admiração, e vendo-o curvado a remexer o seu café, prosseguiu com entonações mais funerárias:
—
"Detendo-vos, e olhai a terra fria! Ali jaz a casta esposa tão cedo arrancada às carícias do seu talentoso cônjuge. Ali soçobrou, como baixei no escarcéu da costa, a virtuosa senhora, que na sua folgazã natureza era o encanto de quantos tinham a honra de se aproximar do seu lar! porque soluçais?"
—
Um café, ó António! — bradou a voz rouca de um sujeito grosso, de jaquetão, que se sentou ao pé, pondo com ruído a bengala sobre a mesa e deitando o chapéu para o cachaço.
O Conselheiro olhou-o de lado, com rancor. E baixando a voz:
—
". . Não soluceis! Que o anjo se não pertence à terra pertence ao céu!.. "
—
O Sô Guedes esteve já por aí? — perguntou a voz rouca.
O criado disse detrás do balcão, limpando com uma rodinha as travessas de metal:
—
Ainda não, senhor D. José!
—
". . Ali" — continuou o Conselheiro — "seu espírito, librando-se nas cândidas asas, entoa louvores ao Eterno! E não cessa de pedir ao Omnipotente mercês e favores para derramar sobre a cabeça do dileto esposo, que um dia, não duvideis, a encontrará nas regiões celestes, pátria das almas de tão subido quilate. ." — E a voz do Conselheiro aflautava-se para indicar aquela ascensão paradisíaca.
—
E ontem à noite esteve cá, o Sô Guedes? — insistiu o sujeito de jaquetão com os cotovelos sobre a mesa, fumando como uma chaminé.
—
Esteve tarde. Lá pelas duas horas.
O Conselheiro sacudiu o papel com um desespero mudo; por trás dos vidros da luneta escura fuzilavam-lhe nos olhos os despeitos homicidas de autor interrompido. Mas prosseguiu:
—
". .E vós, ó almas sensíveis, vertei as lágrimas, mas vertendo-as, não percais de vista que o homem deve curvar-se aos decretos da Providência. . "
E interrompendo-se:
—
Isto é para dar coragem ao nosso pobre Jorge! — Continuou: — ". . da Providência. Deus conta com mais um anjo, e a sua alma brilha pura.. "
—
Esteve com a pequena, o Só Guedes? — fez o sujeito, quebrando no mármore da mesa a cinza do charuto.
O Conselheiro suspendeu-se, pálido de raiva.