Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o Villaça que sahia, atarefado, calçando as luvas.
- Homem, até que emfim!
- Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciencia, que está o visconde do Torral á minha espera...
Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se d'uma coisa muito urgente, muito séria! Mas o outro não se arredava da porta, acabando de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de negocio e de pressa.
- O amigo bem vê... Está o homem á espera! É um rendez-vous para as onze!
Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto á face, tragicamente, que se tratava de Carlos, d'um caso de vida ou de morte! Então o Villaça, n'um grande espanto, atravessou bruscamente o escriptorio, fez entrar Ega n'um cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapé de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pó, e um armario ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapéo para a nuca:
- Então que é?
Ega, com um gesto, indicou fóra o escrevente que podia escutar. O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel Pelicano pedir ao snr. visconde do Torral a fineza de esperar meia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma exclamação anciosa:
- Então que é?
- É um horror, Villaça, um grande horror... Nem eu sei por onde hei de começar.
Villaça, já muito pallido, pousou lentamente o guardachuva sobre a mesa.
- É duello?
- Não... É isto... Você sabia que o Carlos tinha relações com uma snr. Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?...
Uma senhora brazileira, mulher d'um brazileiro, que passára o verão nos Olivaes?...
Sim, Villaça sabia. Fallára até n'isso com o Eusebiosinho.
- Ah, com o Eusebio?... Pois não é brazileira! É portugueza, e irmã d'elle!
Villaça cahiu para o canapé, batendo as mãos n'um assombro.
- Irmã do Eusebio!
- Qual do Eusebio, homem!... Irmã de Carlos!
Villaça ficára mudo, sem comprehender, com os olhos terrivelmente arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: «irmã! Irmã legitima!» Ega por fim sentou-se no canapé de palhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidão do escriptorio, contou o seu encontro com o Guimarães no sarau, e como a verdade terrivel estalára casualmente, n'uma palavra, á esquina do Alliança... Mas quando fallou dos papeis, entregues pela Monforte ao Guimarães, ha tantos annos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora, tão de repente, tão urgentemente, queria restituir á familia - Villaça, até ahi esmagado e como emparvecido, despertou, teve uma explosão:
- Ahi ha marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!...
- Apanhar dinheiro! Quem?
- Quem? exclamou Villaça de pé, arrebatadamente. Essa senhora, esse Guimarães, essa tropa!... É que o amigo não percebe! Se apparecer uma irmã do Maia, legitima e authentica, são quatrocentos contos e pico que cabem á irmã do Maia!...
Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impressão d'aquella idéa inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o procurador, tremulo, voltava á grande somma de quatrocentos contos, lembrava a Companhia do Olho Vivo, Ega terminou por encolher os hombros:
- Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ella é incapaz, absolutamente incapaz, de semelhante intriga. Além d'isso, se é uma questão de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como irmã desde que Carlos lhe promettera casar com ella?
Casar com ella! Villaça erguia as mãos, não queria acreditar. O quê! o snr. Carlos da Maia dar a sua mão, o seu nome, a essa creatura amigada com um brazileiro?... Santissimo nome de Deus! E através do assombro recrescia-lhe a desconfiança, via ahi um novo feito do Olho Vivo.
- Não senhor, Villaça, não senhor! insistiu Ega, já impaciente. Se a questão é de documentos e se ella os tinha, verdadeiros ou falsificados, apresentava-os logo, não ia primeiro dormir com o irmão!
Villaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o diante d'aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava que de resto a questão não era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna - o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:
- Espere, homem, ha outra coisa!... Talvez ella seja filha do italiano!
- E então?... Vem a dar na mesma.
- Alto lá! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. Não tem direito á legitima do pai, e não apanha um real d'esta casa!... Irra, ahi é que está o ponto!
Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso, desgraçadamente! Esta era a filha do Pedro da Maia. O Guimarães conhecia-a de a trazer ao collo, de lhe dar bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas havia quatro ou cinco annos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com uma chumbada... A filha d'esse morrera em Londres, pequenina.
Villaça recahiu no canapé, succumbido.
- Quatrocentos contos, que bolada!
Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma certeza legal, havia já uma forte suspeita.
E desde logo não se podia deixar o pobre Carlos, innocentemente, a chafurdar n'aquella sordidez. Era pois indispensavel revelar tudo a Carlos n'essa noite...
- E você, Villaça, é que tem de lh'o dizer.
Villaça deu um salto que fez bater o canapé contra a parede.
- Eu?
- Você, que é o procurador da casa!