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- Que é, homem?

- O meu chapéo. Imaginei que o tinha posto aqui... Naturalmente ficou lá fóra... Bem, se fôr necessario alguma coisa...

Mal elle sahiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, cahindo pesadamente n'uma cadeira:

- Dize lá!

Ega, sentado no sofá, começou por contar o encontro com o snr. Guimarães, em baixo no botequim da Trindade, depois de ter fallado o Rufino. O homem queria explicações sobre a carta do Damaso, sobre a bebedeira hereditaria... Tudo se aclarára, ficando d'ahi entre elles um começo de familiaridade...

Mas o reposteiro mexeu de leve - e surdiu de novo a face do Villaça:

- Peço desculpa, mas é o meu chapéo... Não o acho, havia de jurar que o deixei aqui...

Carlos conteve uma praga. Então Ega procurou tambem, por traz do sofá, no vão da janella. Carlos, desesperado, para findar, foi vêr entre os cortinados da cama. E Villaça, escarlate, afflicto, esquadrinhava até a alcova do banho...

-Um sumiço assim! Emfim, talvez me esquecesse na ante-camara!... Vou vêr outra vez... O que peço é desculpa.

Os dois ficaram sós. E Ega recomeçou, detalhando como Guimarães, duas ou tres vezes nos intervallos, lhe viera fallar de coisas indifferentes, do sarau, de politica, do papá Hugo, etc. Depois elle procurára Carlos para irem um bocado ao Gremio. Terminára por sahir com o Cruges. E passavam defronte do Alliança...

Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a suas excellencias:

- É o snr. Villaça que não acha o chapéo, diz que o deixou aqui...

Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para despachar o Baptista.

- Vai para o diabo tu e o snr. Villaça!... Que sáia sem chapéo! Dá-lhe o meu! Irra!

Baptista recuou, muito grave.

Vá, acaba lá! exclamou Carlos, recahindo no assento, mais pallido.

E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o Guimarães, desde o momento em que o homem por acaso, já ao despedir-se, já ao estender-lhe a mão, fallára da

«irmã do Maia». Depois entregára-lhe os papeis da Monforte á porta do Hotel de Paris, no Pelourinho...

- E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao Villaça... Fui ao Villaça com a esperança sobretudo de elle saber algum

facto, ter algum documento que atirrasse por terra toda esta historia do Guimarães... Não tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!

No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arrebatadamente, n'uma revolta de todo o sêr:

- E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um homem como eu, como tu, n'uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher, ólho para ella, conheço-a, durmo com ella e, entre todas as mulheres do mundo, essa justamente ha de ser minha irmã! É

impossivel... Não ha Guimarães, não ha documentos que me convençam!

E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhos no chão:

- Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. Duvída tambem, homem, duvída commigo!... É

extraordinario! Todos vocês acreditam, como se isto fosse a coisa fosse a coisa mais natural do mundo, e não houvesse por essa cidade fóra senão irmaõs a dormir juntos!

Ega murmurou:

- Já ia succedendo um caso assim, lá ao pé da quinta, em Celorico...

E n'este momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia appareceu n'uma abertura do reposteiro, encostada á bengala, sorrindo todo com alguma idéa que decerto o divertia. Era ainda o chapéo do Villaça.

- Que diabo fizeram vocês ao chapéo do Villaça? O pobre homem andou por ahi afflicto... Teve de levar um chapéo meu. Cahia-lhe pela cabeça abaixo, enchumaçaram-lh'o com lenços...

Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na atarantação do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente d'elle para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento:

- Que é isso, que têm vocês?... Ha alguma coisa?

Então Carlos, no ardente egoismo da sua paixão, sem pensar no abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio só de esperança que elle, seu avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse alguma certeza contraria a toda essa historia de Guimarães, a todos esses papeis da Monforte - veio para elle, desabafou:

- Ha uma coisa extraordinaria, avô! O avô talvez saiba... O avô deve saber alguma coisa que nos tire d'esta afflicção!... Aqui está,

em duas palavras. Eu conheço ahi uma senhora que chegou ha tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se que é minha irmã legitima!... Passou ahi um homem que a conhecia, que tinha uns papeis... Os papeis ahi estão. São cartas, uma declaração de minha mãi... Emfim uma trapalhada, um montão de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada em pequena, não morreu?... O avô deve saber!

Affonso da Maia, que um tremor tomára, agarrou-se um momento com força á bengala, cahiu por fim pesadamente n'uma poltrona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com o olhar esgazeado e mudo.

- Esse homem, exclamou Carlos, é Guimarães, um tio do Damaso... Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis... Conta tu ao avô, Ega, conta tu do comêço!

Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer que o importante, o decisivo alli era este homem, o Guimarães, que não tinha interesse em mentir e só por acaso, puramente por acaso, fallára em taes coisas - conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista.

Vira-a crescer em Paris, andára com ella ao collo, dera-lhe bonecas. Visitára-a com a mãi no convento. Frequentára a casa que ella habitava em Fontainebleau, como casada...

- Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n'uma carruagem, commigo e com o Ega... Que lha parece, avô?

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