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- Homem, dizia o Villaça passando o lenço pela testa, as coisas querem-se devagar, com methodo. É necessario preparar-se a gente, respirar para dar bem o mergulho...

Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros papeis da caixa perdiam o interesse depois d'aquella confissão da Monforte. Só restava que Villaça apparecesse á noite no Ramalhete ás oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos subir para a rua de S. Francisco.

- Mas o amigo ha de lá estar! exclamou o procurador, já aterrado.

Ega prometteu. Villaça teve um pequeno suspiro. Depois, no patamar, onde viera acompanhar o outro:

- Uma d'estas, uma d'estas!... E eu ainda, tão contente, a jantar no Ramalhete...

- E eu, com elles, na rua de S. Francisco!...

- Emfim, até á noite !

- Até á noite.

Ega não se atreveu n'esse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar diante de Carlos, a vêr-lhe a alegria e a paz - sentindo aquella negra desgraça que descia sobre elle á maneira que a noite descia. Foi pedir as sopas ao marquez, que desde o sarau se conservava em casa, de garganta entrapada. Depois, ás oito e meia, quando calculou que Villaça devia estar já no Ramalhete, deixou o marquez que se enfronhára com o capellão n'uma partida de damas.

Aquelle lindo dia, toldado de tarde, findára n'uma chuvinha miuda que transia as ruas.

Ega tomou uma tipoia. E parava no Ramalhete, já terrivelmente nervoso, quando avistou Villaça no portal, de guardachuva sob o braço, arregaçando as calças para subir.

- Então? gritou-lhe o Ega.

Villaça abriu o guardachuva, para murmurar debaixo, mas em segredo:

- Não foi possivel... Disse que tinha muita pressa, que não me podia ouvir.

Ega bateu o pé, desesperado:

- Oh homem!

- Que quer o amigo? Havia de o agarrar á força? Ficou para ámanhã... Tenho de cá estar ámanhã ás onze horas.

Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: «Irra! não sahimos d'esta!» Foi até ao escriptorio de Affonso. Mas não entrou. Através d'uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto da sala apparecia, quente e cheio de conchêgo, no dôce tom côr de rosa da luz cahindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do whist: no sofá bordado a matiz D. Diogo, murcho e molle, olhava o lume, cofiando os bigodes. E, travadas n'alguma questão, a voz do Craft, que perpassou de cachimbo na mão, e a voz mais lenta de Affonso, tranquillo na sua poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava furiosamente: - «Mas se ámanhã houvesse uma bernarda, esse exercito com que os senhores querem acabar por ser uma escóla de vadiagem é que lhes havia de guardar as costas... É

bom fallar, ter muita philosophia! Mas quando ellas chegam, se não ha meia duzia de baionetas promptas, então são as cólicas!...»

Ega foi d'alli aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas serpentinas: um aroma errava de agua de Lubin e charuto: e o Baptista disse-lhe que o snr. D. Carlos «sahira havia

dez minutos». Fôra para a rua de S. Francisco! Ia lá dormir! Então enervado, com a longa e triste noite diante de si, Ega teve um appetite de se atordoar, dissipar n'uma excitação forte as idéas que o torturavam. Não despedira a tipoia, abalou para S. Carlos. E findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e duas raparigas, a Paca e a Carmen Philosopha, prodigalisando o champagne. Ás quatro da manhã estava bebedo, estatelado sobre o sofá, gemendo sentimentalmente, só para si, as estrophes de Musset á Malibran... O Taveira e a Paca, juntinhos na mesma cadeira, elle com o seu ar terno de chulo, ella muy caliente tambem, debicavam copinhos de gelatina. E a Carmen Philosopha, empanturrada, desapertada, com o collete embrulhado já n'um Diario de Noticias, repicava a faca na borda do prato, cantarolando d'olhos perdidos nos bicos de gaz: Señor Alcalde mayor,

No prenda usted los ladrones...

Acordou ao outro dia ás nove horas, ao lado da Carmen Philosopha, n'um quarto de grandes janellas rasgadas por onde entrava toda a melancolia da escura manhã de chuva. E, emquanto não vinha a tipoia fechada que a servente correra a chamar, o pobre Ega enojado, vexado, com a lingua pastosa, os pés nús sobre o tapete, reunindo o fato espalhado, tinha só uma idéa clara - fugir d'alli para um grande banho, bem perfumado e bem fresco, onde se purificasse n'uma sensação viscosa de Carmen e d'orgia que o arrepiava.

Esse banho lustral foi tomal-o ao Hotel Braganza, para se encontrar com Carlos e com Villaça ás onze horas já lavado e preparado. Mas precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o Baptista, voára a buscar ao Ramalhete: depois almoçou: e já batera meio dia quando se apeou á porta particular dos quartos de Carlos, com a roupa suja n'uma trouxa.

Justamente Baptista atravessva o patamar com camelias n'um açafate.

- O Villaça já veio? Perguntou-lhe Ega baixo, andando em pontas de pés.

- O snr. Villaça já lá está dentro ha bocado. V. exc.ª recebeu a roupa branca?... Eu tambem mandei um fato, porque n'esses casos sempre dá mais frescura...

- Obrigado, Baptista, obrigado!

E Ega pensava: - «Bem, Carlos já sabe tudo, o barranco está passado!» Mas demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletot com uma lentidão cobarde. Por fim, sentindo bater alto o coração, puxou o reposteiro de velludo. Na ante-camara pesava um silencio; a chuva grossa fustigava a porta envidraçada, por onde se viam as arvores do jardim esfumadas na nevoa. Ega levantou o outro reposteiro que tinha bordadas as armas dos Maias.

- Ah! és tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de trabalho com uns papeis na mão.

Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe rebrilhavam, com um fulgor sêcco, anciosos e mais largos na pallidez que o cobria. Villaça, sentado defronte, passava vagarosamente pela testa, n'um movimento cansado, o lenço de sêda da India.

Sobre a mesa alastravam-se os papeis da Monforte.

- Que diabo de embrulhada é esta que me vem contar o Villaça? rompeu Carlos, cruzando os braços diante do Ega, n'uma voz que apenas de leve tremia.

Ega balbuciou:

- Eu não tive coragem de te dizer...

- Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem?

Villaça ergueu-se immediatamente. Ergueu-se com a pressa d'um galucho timido que é rendido n'um posto arriscado, pediu licença, se não precisavam d'elle, para voltar ao escriptorio. Os amigos decerto preferiam conversar mais livremente. De resto, alli ficaram os papeis da snr.ª D. Maria Monforte. E se elle fosse necessario um recado encontrava-o na rua da Prata ou em casa...

- E v. exc.ª comprehende, acrescentou elle enrolando nas mãos o lenço de sêda, eu tomei a iniciativa de vir fallar, por ser o meu dever, como amigo confidencial da casa... Foi essa tambem a opinião do nosso Ega...

- Perfeitamente, Villaça, obrigado! acudiu Corlos. Se fôr necessario lá mando...

O procurador, com o lenço na mão, lançou em redor um olhar lento. Depois espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surprehendido. E Carlos seguia com impaciencia os passos timidos que elle dava pelo quarto, procurando...

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