De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de genio; o marquez de Souzellas...
- Não ha mulheres?
- Não ha quem as receba. É um covil de solteirões. A viscondessa, coitada...
- Bem sei. Um apopleté...
- Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...
- O de Resende, o cretino?
- O cretino. Euviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado thisico, todo carregado de luto... Um funebre.
O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e solida felicidade que Carlos já notara, disse puchando lentamente os punhos:
- É necessario reorganisar essa vida. Precisamos arranjar um cenaculo, uma bohemiasinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com litteratura... Tu conheces o Craft?
- Sim, creio que tenho ouvido fallar...
Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor cousa que havia em Portugal...
- É um inglez, uma especie de doido?...
Ega encolheu os hombros. Um doido!... Sim, era essa a opinião da rua dos Fanqueiros; o indigena, vendo uma originalidade tão forte como a de Craft, não podia explical-a senão pela doidice. O Craft era um rapaz extraordinario!... Agora tinha elle chegado da Suecia, de passar tres mezes com os estudantes de Upsala. Estava tambem na Foz... Uma individualidade de primeira ordem!
- É um negociante do Porto, não é?
- Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorancia. O Craft é filho d'um clergiman da egreja ingleza do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou d'Australia, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negoceia, nem sabe o que isso é. Dá largas ao séu temperamento byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo, collecciona obras d'arte, bateu-se como voluntario na Abyssinia e em Marrocos, emfim vive, vive na grande, na forte, na heroica accepção da palavra. É necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle... Tens razão, caramba, está calor.
Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho de camisa.
- O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem collete?
- Não; então não a podia aguentar... Isto é para o effeito moral, para impressionar o indigena... Mas, não ha negal-o, é pesada!
E immediatamente voltou á sua idéa: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organisava-se um Cenaculo, um Decameron d'arte e dilletantismo, rapazes e mulheres - tres ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das philosophias...
Carlos ria-se d'esta idéa do Ega. Tres mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentavel illusão de um homem de Celorico! O marquez de Souzella tinha tentado, e para uma vez só, uma cousa bem mais simples - um jantar no campo com actrizes. Pois fôra o escandalo mais engraçado e mais caracteristico: uma não tinha creada e queria levar comsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, acceitando, o brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma cóça. Esta não tinha vestido para ir; aquella pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalisou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pôlhos, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas, -
emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquinio do Gymnasio levar uma facada...
- E aqui tens tu Lisboa.
- Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, idéas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilisação custa-nos carissima com os direitos da alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?
Desembaraçado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega reapparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes phrases, n'uma lucta constante com o monocolo, que lhe caía do olho, que elle procurava pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e á uma, malharam sobre o paiz...
Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou sobre a pelissa, sepultou-se n'ella, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, sahio com um arsinho de luxo e d'aventura.
- John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?
- No Universal, esse sanctuario!
Carlos abominava o Universal, queria que elle viesse para o Ramalhete.
- Não me convém...
- Em todo o caso vaes hoje lá jantar, ver o avô.
- Não posso. Estou compromettido com a besta do Cohen... Mas vou lá ámanhã almoçar.
Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para cima:
- Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!
- O quê! está prompto? exclamou Carlos, espantado.
- Está esboçado, á brocha larga...
O Livro do Ega! Fôra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle começára a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando pelos cafés phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela fórma e pela idéa, uma evolução litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegára ao Brazil... E sentindo esta ansiosa espectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se emfim a escrevel-o.
Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memorias d'um Atomo, e tinha a fórma d'uma autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da
crosta ainda molle do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade - e mais tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coração dos poetas. Gota de agua nos lagos de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n'o orvalhado, petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. Fôra omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e cançado d'esta jornada atravez do Ser, repousava - escrevendo as suas Memorias... Tal era este formidavel trabalho - de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:
- É uma Biblia!
V
No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist.
A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chamma morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.
Esse velho dandy, - a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira n'um leito real - acabava justamente de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruina, que elle abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo até á raiz dos cabellos.
Mas passára. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão limpou as lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e perguntou a Affonso, seu parceiro, n'uma voz rouca e surda:
- Paus, hein?
E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n'um d'aquelles silencios que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Villaça seu parceiro, resingão, e com todo o sangue na face.
Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção côr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silencio o ouro d'um Sèvres, uma pallidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica.
- O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar.
Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:
- Como vae ella? Está socegada?