- Talvez... Sopônhamos que morreram ambas, e não se falle mais n'isso.
Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Villaça passou em Sta. Olavia não se proferiu mais o nome de Maria Monforte.
Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio ao quarto d'elle, a entregar-lhe as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a Villaça Junior, um alfinete de peito com uma magnifica saphira - e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado, balbuciava os agradecimentos:
- Agora outra cousa, Villaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que procure essa creatura, e que lhe offereça dez ou quinze contos de réis, se ella me quizer entregar a filha... No caso, está claro, que esteja viva... E quero que você saiba d'esse Alencar a morada da mulher em Paris.
O Villaça não respondeu, occupado a metter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou deante d'Affonso, a coçar reflectidamente o queixo.
- Então que lhe parece, Villaça?
- Parece-me arriscado.
E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus habitos... Nem fallaria o portuguez. As saudades da mãe haviam de ser terriveis... Emfim, o sr. Affonso da Maia trazia uma extranha para casa...
- Você tem rasão, Villaça. Mas a mulher é uma prostituta, e a pequena é do meu sangue.
N'esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vôvô, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã.
- O Brown tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vôvô viesse ver, andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...
- Vem depressa, ó vôvô! Depressa, que é necessario ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha que se póde affligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Villaça vem ver! Ó
vôvô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha póde dar pela falta!...
E impaciente com a lentidão risonha do vôvô, tanta indifferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.
- Que bom coração! exclamou o Villaça commovido. A pensar nas saudades da coruja...
A mãe d'elle é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!
Affonso encolheu tristemente os hombros. Iam já no corredor quando elle, parando um momento, baixando a voz:
- Tem-me esquecido de lhe contar, Villaça, o Carlos sabe que o pae que se matou...
Villaça arredondou os olhos d'espanto. Era verdade. Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: - ó vôvô, o papá matou-se com uma pistola! - Naturalmente algum creado que lh'o contara...
- E vossa excellencia?
- Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, n'essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quiz ser enterrado em Sta.
Olavia, ahi está. Não queria que o filho jámais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de certo, nunca o saberá. Quiz que dois retratos que havia d'ella em Arroios fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas não me pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que n'um momento de loucura, o papá tinha dado um tiro em si...
- E elle?
- E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhã para lhe dar tambem uma pistola... E ahi está o resultado d'essa revelação: é que tive de mandar vir do Porto uma pistola de vento...
Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.
Villaça ao outro dia partiu para Lisboa.
Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador, trasendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a Mme. de l'Estorade, contara-lhe que no
boudoir d'ella havia um adoravel retrato de creança, de olhos negros, cabello d'azeviche, e uma pallidez de nacar. Esta pintura ferira-o, não só por ser d'um grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerario, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no boudoir: e elle perguntara á Monforte se era um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão assim dissipadas todas as duvidas, accrescentava o Villaça. O pobre anjinho está n'uma patria melhor. E para ella, bem melhor!»
Affonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo André procurara Mme.de l'Estorade, havia semanas que ella partira para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no Club Imperial, a que elle pertencia, um amigo que conhecia bem Mme. de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acrobata do Circo d'Inverno nos campos Elyseos, homem de fórmas magnificas, um Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam e que a Monforte empolgára. Naturalmente corria agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos.
Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao Villaça sem um commentario. E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª rasão, é atroz: e mais vale suppor que todos morreram, e não gastar mais cera com tão ruins defuntos...» E depois n'um post-scriptum accrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, ahi irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias d'hospitalidade.»
Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Affonso lera alto o P.S.
Todos se alegraram,na esperança de ver o bom Villaça em breve na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.
Mas, terça feira á noite, chegava um telegramma de Manuel Villaça annunciando que o pae morrera, n'essa manhã, d'uma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço que, de repente, Villaça se sentira muito suffocado e com tonturas: ainda tivera forças d'ir ao quarto respirar um pouco d'ether: mas ao voltar á sala cambaleava, queixava-se de vêr tudo amarello, e caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda n'esse momento se occupou da casa que ha trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d'uma venda de cortiça, recomendações que o filho já não poude perceber: depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!
Affonso da Maia ficou profundamente affectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre os creados, a morte de Villaça foi como um lucto domestico. Uma d'essas tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados
- quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas num papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço, e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Villaça não voltaria a vel-os á quinta.
- Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vêr.
O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:
- O Villaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vôvô, para onde o levaram?
- Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.
Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito sério, com os olhos n'elle: