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Foi uma d'essas manhãs que preguiçando assim no sophá com a Revista dos Dois Mundos na mão, elle ouviu um rumor na antecamara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:

- Sua Alteza Real está visivel?

- Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sophá.

E cahiram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.

- Quando chegaste tu?

- Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos hombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba! Tu vens esplendido d'esses Londres, d'essas civilisações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não

ha nada como a barba toda!

Carlos ria, abraçando-o outra vez.

- E d'onde vens tu, de Celorico?

- Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O figado, o baço, uma infinidade de visceras compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e aguas ardentes...

Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa...

Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ás varzeas de Celorico, o adeus de eternidade.

- Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa que me succede com minha mãe...

Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caíu! Fiquei na quinta, fazendo epigrammas ao padre Seraphim e a toda a côrte do céu. Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diphtericas...

A mamã salta immediatamente á conclusão que é a minha presença, a presença do atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que offendeu Nosso Senhor e attrahiu o flagello. Minha irmã concorda. Consultam o padre Seraphim. O homem, que não gosta de me vêr na quinta, diz que é possivel que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

- E a epidemia...

- Desappareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.

Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabello que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó d'arroz - e Carlos deixou emfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos labios:

- Ega, que extraordinario casaco!

Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça de principe russo, agasalho de trenò e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados á Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de thisico uma rica e fôfa espessura de pelles de marta.

- É uma boa pelliça, hein? disse elle logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Beneficios da epidemia.

- Como podes tu supportar isso?

- É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.

Tornou a recostar-se no sophá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monocolo no olho, examinou o gabinete.

- E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto explendido!

Carlos fallou dos seus planos, de altas idéas de trabalho, das obras do laboratorio...

- Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o velludo dos reposteiros, mirar os torneados da secretária de pau preto.

- Não sei. O Villaça é que deve saber...

E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da pelliça, inventariando o gabinete, fazia considerações:

- O velludo dá seriedade... E o verde escuro é a côr suprema, é a côr esthetica... Tem a sua expressão propria, enternece e faz pensar... Gosto d'este divan. Movel de amor...

Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos.

- Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito... E o cretonesinho agrada-me.

Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da sua ferrugem de prata, n'um vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano, olhando o livro de musica aberto, as Canções de Gounod, teve uma surpreza enternecida:

- Homem, é curioso... Cá me apparece! A Barcarolla! É deliciosa, hein?...

Dites, la jeune belle,

Ou voulez-vous aller?

La voile...

Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!

Carlos teve outra exclamação, e crusando os braços diante d'elle:

- Tu estás extraordinario, Ega! Tu és outro Ega!... A proposito da Foz... Quem é essa Madame Cohen, que estava tambem na Foz, de quem tu, em cartas successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin, na Haia, em Londres, me fallavas como os arrobos do Cantico dos Canticos?

Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando negligentemente o monocolo ao lenço de seda branca:

- Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. É a mulher do Cohen, has de conhecer, um que é director do Banco Nacional... Démos-nos bastante. É sympathica... Mas o marido é uma besta... Foi uma flitartion de praia. Voila tout.

Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o lume ao charuto, e ainda córado.

- Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete? O avô Affonso? Quem vae por lá?...

No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrepito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue, á espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...

- Não conheço. Refugiado?... Polaco?...

- Não, ministro da Filandia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples transacção com tantas finuras diplomaticas, tantos documentos, tantas cousas com o sello real da Filandia, que o pobre Villaça aturdido, para se desembaraçar, remetteu-o ao avô. O avô, desnorteado tambem, offereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken considera isto um serviço feito ao rei da Filandia, á Filandia, vae visitar o avô, em grande estado, com o secretario da legação, o consul, o vice-cousul...

- Isso é sublime!

- O avô convida-o a jantar... E como o homem é muito fino, um gentleman, enthusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma auctoridade no whist, o avô adopta-o. Não sae do Ramalhete.

- E de rapazes?

Are sens