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Os olhos do avô illuminavam-se ouvindo este plano grandioso.

- E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós fizemos n'estes ultimos annos de Santa Olavia algumas economias...

- Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Villaça.

As semanas foram passando n'estes planos de installação. Carlos trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a sciencia como mera ornamentação interior do espirito, mais inutil para os outros que as proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de solitario: desejava ser util. Mas as suas ambições fluctuavam, intensas e vagas; ora pensava n'uma larga clinica; ora na composição macissa de um livro iniciador; algumas vezes em experiencias physiologicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou suppunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha d'applicação. «Alguma cousa de brilhante,» como elle dizia: e isto para elle, homem de luxo e homem d'estudo, significava um conjuncto de representação social e de actividade scientifica; o remecher profundo de idéas entre as influencias delicadas da riqueza; os elevados vagares da philosophia entremeados com requintes de sport e de gosto; um Claude Bernard que fosse tambem um Morny... No fundo era um dilletante.

Villaça fôra consultado sobre a localidade propria para o laboratorio; e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligencia incançavel. Primeira cousa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?...

Carlos não decidira fazer exclusivamente clinica: mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Então Villaça suggeriu que o consultorio estivesse separado do laboratorio.

- E a minha razão é esta: a vista de apparelhos, machinas, cousas, faz esmorecer os doentes...

- Tem você razão, Villaça! exclamou Affonso. Já meu pae dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.

- Separados, separados, meu senhor, affirmou o procurador n'um tom profundo.

Carlos concordou. E Villaça bem depressa descobriu, para o laboratorio, um antigo armazem, vasto e retirado, ao fundo de um pateo, junto ao largo das Necessidades.

- E o consultorio, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Rocio, alli em pleno Rocio!

Esta idéa do Villaça não era desinteressada. Grande enthusiasta da Fusão, membro do Centro progressista, Villaça Junior aspirava a ser vereador da camara, e mesmo em dias de

satisfação superior (como quando o seu anniversario natalicio vinha annunciado no Illustrado, ou quando no Centro citava com applauso a Belgica) parecia-lhe que tantas aptidões mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultorio gratuito, no Rocio, o consultorio do dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influencia. E tanto se agitou, que d'ahi a dois dias tinha lá alugado um primeiro andar d'esquina.

Carlos mobilou-o com luxo. N'uma antecamara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, á franceza, um creado de libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita côr, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de collecções do Charivari, de vistas estereoscopicas, d'albuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultorio até um piano mostrava o seu teclado branco.

O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em velludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que começavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora visinho do Ramalhete, o Cruges, o marquez de Souzellas, com quem percorrera a Italia - vieram vêr estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominavel; Taveira absorveu-se nas photographias d'actrizes; e a unica approvação franca veiu do marquez, que depois de contemplar o divan do gabinete, verdadeiro movel de serralho, vasto, voluptuoso, fôfo, experimentou-lhe a doçura das molas e disse, piscando o olho a Carlos:

- A calhar.

Não pareciam acreditar n'estes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos até fizera annunciar o consultorio nos jornaes; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o de uma engommadeira á Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes, - encarregou Villaça de retirar o annuncio.

Occupava-se então mais do laboratorio, que decidira installar no armazem, ás Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ia visitar as obras. Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformar aquelle espaço em fresco jardinete inglez; e a porta do casarão encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada d'ermida, fazendo um accesso veneravel para o seu sanctuario de sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martellar preguiçoso n'uma poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas!

Um carpinteiro esgouroviado e triste parecia estar alli, desde seculos, aplainando uma taboa eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando a claraboia, não cessavam de assobiar, no sol d'inverno, alguma lamuria de fado.

Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d'obras, que lhe asseverava invariavelmente

«como d'ahi a dois dias havia de s. ex.ª vêr a differença.» Era um homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, por sympathia, como visinho, apertava-lhe sempre a mão: e o sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um democrata, confiava-lhe as suas esperanças. O que elle desejava primeiro que tudo era um 93, como em França...

- O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face do demagogo.

- Não, senhor, um navio, um simples navio...

- Um navio?

- Sim, senhor, um navio fretado á custa da nação, em que se mandasse pela barra fóra o rei, a familia real, a cambada dos ministros, dos politicos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

Carlos sorria, ás vezes argumentava com elle.

- Mas está o sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão exactamente diz, desapparecesse pela barra fóra, ficavam resolvidas todas as cousas e tudo atolado em felicidade?

Não, o sr. Vicente não era tão «burro» que assim pensasse. Mas, supprimida a cambada, não via s. ex.ª? Ficava o paiz desatravancado; e podiam então começar a governar os homens de saber e de progresso...

- Sabe v. ex.ª qual é o nosso mal? Não é má vontade d'essa gente; é muita somma de ignorancia. Não sabem. Não sabem nada. Elles não são maus, mas são umas cavalgaduras!

- Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relogio e despedindo-se d'elle com um valente shakehands, veja se me andam. Não lh'o peço como proprietario, é como correligionario.

- D'aqui a dois dias ha de v. ex.ª vêr a differença, respondia o mestre d'obras, desbarretando-se.

No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoço. Carlos encontrava quasi sempre o avô já na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tepida suavidade d'aquelle fim de outono não permittia accender lume, mas verdejando todo de plantas d'estufa.

Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxo macisso e sobrio, as baixellas antigas; pelas tapeçarias ovaes dos muros apainelados corriam scenas de ballada, caçadores medivaes soltando o falcão, uma dama entre pagens alimentando os cysnes de um lago, um cavalleiro de viseira callada seguindo ao longo d'um rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a meza resplandecia com as flôres entre os crystaes.

O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara dignatario da Egreja comia com os senhores, lá estava já, magestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, á sombra de algum grande ramo. Era alli, no aroma das rosas, que o veneravel gato gostava de lamber, com o seu vagar estupido, as sopas de leite servidas n'um covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo elle uma bola entufada de pello branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta macia.

Affonso, - como confessava, sorrindo e humilhado - ía-se tornando com a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentração de critico, as obras d'arte do chef francez que tinham agora, um cavalheiro de mau genio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Theodore. Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamação, precipitando-se sobre o relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia um calice de Chartreuse, accendia á pressa um charuto:

- Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.

E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquella occupação, emquanto elle ficava alli a vadiar toda a manhã...

- Quando esse eterno laboratorio estiver acabado, talvez vá para lá passar um bocado, occupar-me de chimica.

- E ser talvez um grande chimico. O avô tem já a feitio.

O velho sorria.

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