sob um sombrio painel de Santa Magdalena no deserto penitenciando-se e mostrando nudezas ricas de nympha lubrica, interpellou-o
quasi com aspereza:
- Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?
Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre elles, a respeito d'uma parelha d'egoas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem; e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas, a que elle dizia «ter tomado enguiço, apesar de serem dois nobres animaes». Pedia por ellas um conto e quinhentos mil réis. Silveirinha fôra avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga: o marquez tinha a sua moral propria para negocios de gado, e exultaria em intrujar um pichote. Apesar de advertido, Eusebio cedendo á influencia da grossa voz do marquez, da robustez do seu phisico, da antiguidade do seu titulo, não ousava recusar. Mas hesitava; e n'essa noite deu a resposta usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:
- Eu verei, marquez... Um conto e quinhentos é dinheiro...
O marquez ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:
- Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animaes que são duas estampas... Irra ! Sim ou não!
Eusebio ageitou as lunetas, rosnou:
- Eu verei... Elle é dinheiro. Sempre é dinheiro...
- Queria você, talvez, pagal-as com feijões? Voce leva-me a commetter um excesso!
O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquez, baboso por musica, immediatamente largou a questão das egoas, recolheu em pontas de pés.
Eusebiosinho ainda ficou a remoer, a coçar o queixo; emfim, ás primeiras notas de Steinbroken, veiu pousar como uma sombra silenciosa entre a hombreira e o reposteiro.
Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabelleira como pousada ás costas, Cruges feria o acompanhamento, d'olhos cravados no livro de Melodias Filandezas.
Ao lado, empertigado, quasi official, com o lenço de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, n'um movimento de tarantella triumphante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquez gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera - fresca e silvestre, primavera do norte em paiz de montanhas, quando toda uma aldêa dança em córos sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pallido avelluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborisavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo elle se ía alçando sobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito, alargava um gesto, as bellas joias dos seus anneis faiscavam.
O marquez, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel, que viajara na Filandia, e cantava ás vezes aquella Primavera nas suas horas de sentimentalismo flamengo...
Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voz n'um alto, - e immediatamente, afastando-se do piano, passou o lenço sobre as fontes, sobre o pescoço, rectificou com um puchão a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges n'um silencioso shake-hands.
- Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as mãos como malhos.
E outros applausos resoaram á porta, dos parceiros do whist, que tinham findado a partida. Quasi immediatamente os escudeiros entravam com um serviço frio de croquettes e sandwiches, offerecendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma meza, entre os renques de calices, a puncheira fumegou n'um aroma doce e quente de cognac e limão.
- Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso, vindo-lhe bater amavelmente no hombro, ainda dá d'esses bellos cantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar?
- Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido, nô, prefiro um copita Porto...
- Hoje fomos nós as victimas, disse-lhe o general respirando com delicia o seu punch.
- Você tãbem, meu genêral?
- Sim, senhor, tambem me cascaram...
E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da manhã? perguntava Affonso. A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy... O que o alegrava n'isto, era o desapparecimento definitivo do antipathico senhor de Broglie e da sua clique. A impertinencia d'aquelle academico estreito, querendo impôr a opinião de dois ou tres salões doutrinarios á França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Times cantava-lh'as!
- E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!...
O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente as mãos disse n'uma meia voz grave a sua phrase, a phrase definitiva com que julgava todos os acontecimentos que apparecem em telegrammas :
- É gràve... É eqsessivemente gràve...
Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe attribuia uma dictadura proxima, o diplomata tomou mysteriosamente o braço de Sequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens d'estado, poetas, viajantes ou tenores.
- É um homè mûto forte. É um homè eqsessivemente forte!
- O que elle é, é um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu calice.
E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a republica - em quanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Choppin, depois de ter devorado um prato de croquettes.
O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo sophá, um com a sua chasada d'invalido, outro com um copo de St. Emilion, a que aspirava o bouquet, fallavam tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta: fôra o unico que durante a guerra mostrara ventas de homem; lá que tivesse «comido» ou que «quizesse comer» como diziam, - não sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia um cidadão serio, optimo para chefe do Estado...
Homem de sala? perguntou languidamente o velho leão.
O marquez só o vira na Assembléa, presidindo e muito digno...
D. Diogo murmurou, com um melancolico desdem na voz, no gesto, no olhar:
- O que eu queria a toda essa canalha era a saude, marquez!
O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda essa gente, parecendo forte por se occupar de cousas fortes, no fundo tinha asthma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hercules...
- Um Hercules! O que é, é que você apaparica-se muito... A doença é um mau habito em que a gente se põe. É necessario reagir... Você devia fazer gymnastica, e muita agua fria por essa espinha. Você, na realidade, é de ferro!
- Enferrujadote, enferrujadote... - replicou o outro, sorrindo e desvanecido.
- Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher, antes o queria a você que a esses badamecos que por ahi andam meio
podres... Já não ha homens da sua tempera, Dioguinho!
- Já não ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruinas d'um mundo.
Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua chasada. O marquez ainda se demorou, preguiçando no sophá, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar áquella sala que o encantava com o seu luxo Luiz XV, os seus floridos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cordeiros, sombras d'idyllios mortos, transparecendo n'uma trama de seda...
Áquella hora, no adormecimento que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços - e atacou, com um pedal solemne, o Hymno da Carta. O marquez fugiu.
Villaça e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n'uma das arcas baixas de carvalho lavrado.
- A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar.
Ambos sorriram; Villaça respondeu jocosamente:
- É necessario salvar a patria!
Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia eleitoral no circulo de Resende, e alli ás noites no Ramalhete faziam conciliabulos. N'esse momento porém fallavam dos Maias: Villaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de Sta. Olavia, quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa, onde a auctoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia approvar o ter Carlos tomado uma frisa de assignatura.
- Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites... Hoje diz que ha enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou tres vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de mil réis Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras! Não, não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não me utiliso d'ella; nem o amigo. É