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emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquinio do Gymnasio levar uma facada...

- E aqui tens tu Lisboa.

- Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, idéas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilisação custa-nos carissima com os direitos da alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?

Desembaraçado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega reapparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes phrases, n'uma lucta constante com o monocolo, que lhe caía do olho, que elle procurava pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e á uma, malharam sobre o paiz...

Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou sobre a pelissa, sepultou-se n'ella, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, sahio com um arsinho de luxo e d'aventura.

- John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?

- No Universal, esse sanctuario!

Carlos abominava o Universal, queria que elle viesse para o Ramalhete.

- Não me convém...

- Em todo o caso vaes hoje lá jantar, ver o avô.

- Não posso. Estou compromettido com a besta do Cohen... Mas vou lá ámanhã almoçar.

Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para cima:

- Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!

- O quê! está prompto? exclamou Carlos, espantado.

- Está esboçado, á brocha larga...

O Livro do Ega! Fôra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle começára a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando pelos cafés phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela fórma e pela idéa, uma evolução litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegára ao Brazil... E sentindo esta ansiosa espectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se emfim a escrevel-o.

Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memorias d'um Atomo, e tinha a fórma d'uma autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da

crosta ainda molle do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade - e mais tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coração dos poetas. Gota de agua nos lagos de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n'o orvalhado, petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. Fôra omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e cançado d'esta jornada atravez do Ser, repousava - escrevendo as suas Memorias... Tal era este formidavel trabalho - de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

- É uma Biblia!

V

No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist.

A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chamma morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.

Esse velho dandy, - a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira n'um leito real - acabava justamente de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruina, que elle abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo até á raiz dos cabellos.

Mas passára. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão limpou as lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e perguntou a Affonso, seu parceiro, n'uma voz rouca e surda:

- Paus, hein?

E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n'um d'aquelles silencios que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Villaça seu parceiro, resingão, e com todo o sangue na face.

Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção côr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silencio o ouro d'um Sèvres, uma pallidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica.

- O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar.

Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:

- Como vae ella? Está socegada?

- Está muito melhor!

Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsacianna, casada com o Marcellino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus bellos cabellos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado á morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda ás vezes á noite atravessava a rua para a ir vêr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do leito e de gabão pelos hombros, suffocava soluços d'amante, escrevinhando no livro de contas.

Affonso interessara-se anciosamente por aquella pneumonia; e agora estava realmente agradecido á Marcellina por ter sido salva por Carlos. Fallava d'ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsacianno, a prosperidade que trouxera á padaria... Para a convalescença, que se approximava, já lhe mandára até seis garrafas de Chateau-Margaux.

- Então fóra de perigo, inteiramente fóra de perigo? - perguntou Villaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito a sua sollicitude.

- Sim, quasi rija - disse Carlos, que se approximara da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.

É que a noite, fóra, estava regelada! Desde o anoitecer geava, d'um céu fino e duro, transbordando de estrellas que rebrilhavam como pontas afiadas d'aço; e nenhum d'aquelles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera jámais o thermometro tão baixo. Sim, Villaça lembrava-se d'um janeiro peor no inverno de 64...

- É necessario carregar no punch, hein, general! - exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos hombros macissos do Sequeira.

- Não me opponho, rosnou o outro, que fixava com concentração e rancor um valete de copas sobre a meza.

Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: uma chuva d'oiro cahiu por baixo, uma chamma mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as pelles de urso onde o Reverendo Bonifacio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gôso.

- O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pés á chamma. Tem, emfim, justificada a pellissa. A proposito, algum dos senhores tem visto o Ega estes ultimos dias?

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