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podres... Já não ha homens da sua tempera, Dioguinho!

- Já não ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruinas d'um mundo.

Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua chasada. O marquez ainda se demorou, preguiçando no sophá, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar áquella sala que o encantava com o seu luxo Luiz XV, os seus floridos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cordeiros, sombras d'idyllios mortos, transparecendo n'uma trama de seda...

Áquella hora, no adormecimento que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços - e atacou, com um pedal solemne, o Hymno da Carta. O marquez fugiu.

Villaça e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n'uma das arcas baixas de carvalho lavrado.

- A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar.

Ambos sorriram; Villaça respondeu jocosamente:

- É necessario salvar a patria!

Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia eleitoral no circulo de Resende, e alli ás noites no Ramalhete faziam conciliabulos. N'esse momento porém fallavam dos Maias: Villaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de Sta. Olavia, quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa, onde a auctoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia approvar o ter Carlos tomado uma frisa de assignatura.

- Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites... Hoje diz que ha enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou tres vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de mil réis Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras! Não, não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não me utiliso d'ella; nem o amigo. É

verdade, que o amigo está de luto.

Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter para o fundo da frisa - se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso molle:

- Indo assim, até se podem encalacrar...

Uma tal palavra, tão humilhante, applicada aos Maias, á casa que elle administrava, escandalisou Villaça. Encalacrar! Ora essa!

- O amigo não me comprehendeu... Ha despezas inuteis, sim, mas, louvado Deus, a casa póde bem com ellas! É verdade que o rendimento gasta-se todo, até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas seccas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...

Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavallos, o cocheiro inglez, os grooms... O procurador acudiu:

- Isso, amigo, é de razão. Uma gente d'estas deve ter a sua representação, as suas cousas bem montadas. Ha deveres na sociedade... É como o sr. Affonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Não é com elle, que lhe conheço aquelle casaco ha vinte annos... Mas são esmolas, são pensões, são emprestimos que nunca mais vê...

- Desperdicios...

- Não lh'o censuro... É o costume da casa; nunca da porta dos Maias, já meu pae dizia, sahiu ninguem descontente... Mas uma frisa, de que ninguem usa! só para o Cruges, só para o Taveira!...

Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola d'uma ulster, d'onde sahiam as pontas d'um cachenez de seda clara. O

escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e elle, de casaca e collete branco, limpando o bonito bigode humido da geada, veiu apertar a mão ao caro Villaça, ao amigo Eusebio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chic...

- Nada, nada, dizia Villaça todo amavel, cá o nosso solzinho portuguez sempre é melhor...

E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquez, de Carlos, n'uma das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e sport.

- Então? que tal? A mulher? foi a interrogação que acolheu o Taveira.

Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a dama nova, Taveira reclamou alguma cousa quente. E enterrado n'uma poltrona junto do fogão, com os sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando o aroma do punch, saboreando uma cigarette, declarou emfim que não tinha sido um fiasco.

- Que ella, a meu vêr, é uma insignificancia, não tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgencia, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ella estava contente...

- Vamos a saber, Taveira, que tal é ella? inquiria o marquez.

- Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos; bons dentes...

- E o pésinho? - E o marquez, já com os olhos accesos, passava de vagar a mão pela calva.

Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés...

- Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.

- A gente do costume... É verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá appareceram hoje...

Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, poseur... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabello côr de cenoura, muito bem feita... Emfim, Carlos não conhecia.

Villaça encontrava o conde no centro progressista, onde elle era uma columna do partido. Rapaz de talento, segundo o Villaça. O que o espantava é que elle podesse ter assim frisa de assignatura, atrapalhado como estava: ainda não havia tres mezes lhe tinham protestado uma letra de oitocentos mil réis, no tribunal do commercio...

- Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo.

- Passa-se lá bem, ás terças feiras... - disse Taveira, mirando a sua meia de seda.

Depois fallou-se do duello do Azevedo da Opinião com o Sá Nunes, auctor d'El-Rei Bolacha, a grande magica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornaes de pulhas e de ladrões: e havia dez interminaveis dias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que Sá Nunes não se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se tambem que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo Villaça, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela policia...

- Uma canalha! exclamou o marquez com um dos seus resumos brutaes que varriam tudo.

- O ministro não deixa de ter razão, observou Villaça. Isto ás vezes, em duellos, póde bem succeder uma desgraça...

Houve um curto silencio. Carlos, que caía de somno, perguntou ao Taveira, atravez doutro bocejo, se vira o Ega no theatro.

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