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- Podera! La estava de serviço, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo puxado...

- Então essa cousa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquez, parece clara...

- Transparente, diaphana! um crystal!...

Carlos, que se erguera a accender uma cigarette para despertar, lembrou logo a grande maxima de D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel não se saberem! Mas o marquez, a isto, lançou-se em considerações pesadas. Estimava que o Ega se atirasse; e via ahi um facto de represalia social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral não gostava de judeus; mas nada lhe ofendia tanto o gosto e a razão como a especie banqueiro.

Comprehendia o salteador de clavina, n'um pinheiral; admittia o communista, arriscando a pelle sobre uma barricada. Mas os argentarios, os Fulanos e Cas. faziam-n'o encavacar... E

achava que destruir-lhes a paz domestica era acto meritorio!

- Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas da manhã.

- Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se?

- Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!

Affonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham partido; e D.

Diogo, no fundo da sua velha traquitana, lá fôra tambem a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros não tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na ulster, trotou até casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquez conseguiu levar Cruges no coupé, para lhe ir fazer musica a casa, no orgão, até ás tres ou quatro horas, musica religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho, esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamente como se caminhasse para a sua propria sepultura, lá se dirigiu ao lupanar onde tinha uma paixão.

O laboratorio de Carlos estava prompto - e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta meza de marmore, um amplo divan de clina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metaes e crystaes; mas as semanas passavam, e todo esse bello material de experimentação, sob a luz branca da claraboia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã um servente ia ganhar o seu tostão diario, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.

Carlos realmente não tinha tempo de se occupar do laboratorio; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das cousas - como elle dizia rindo ao avô. Logo pela manhã cedo ía fazer as suas duas horas d'armas com o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcellina - e as garrafas de Bordeus que lhe mandara Affonso. Começava a ser conhecido como medico. Tinha visitas no consultorio - ordinariamente bachareis, seus contemporaneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada historia de ternuras funestas. Salvara d'um

garrotilho a filha d'um brazileiro, ao Aterro - e ganhara ahi a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua familia. O dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma operação ovariotomica. E emfim (mas esta consagração não a esperava realmente Carlos tão cedo) alguns dos seus bons collegas, que até ahi, vendo-o só a governar os seus cavallos inglezes, fallavam do «talento do Maia» - agora percebendo-lhe estas migalhas de clientella, começavam a dizer «que o Maia era um asno.» Carlos já fallava a serio da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes d'estylista, dois artigos para a Gazeta Medica; e pensava em fazer um livro d'idéas geraes, que se devia chamar Medicina Antiga e Moderna. De resto occupava-se sempre dos seus cavallos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E atravez de tudo isto, em virtude d'essa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de pathologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia fallar d'uma estatua ou d'um poeta, attrahia-o singularmente a antiga idéa do Ega, a creação d'uma Revista, que dirigisse o gosto, pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...

Era porém inutil lembrar ao Ega este bello plano. Abria um olho vago, respondia:

- Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar n'isso! Havemos de fallar, eu apparecerei...

Mas não apparecia no Ramalhete, nem no consultorio; apenas se avistavam, ás vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que não passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Cruges; d'onde podesse olhar de vez em quando Rachel Cohen - e ali ficava, silencioso, com a cabeça appoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade...

O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando mobilias... Mas era facil encontral-o pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar e a farejar - ou então no fundo de tipoias de praça, batendo a meio galope, n'um espalhafato de aventura.

O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante soberbo d'um Brummel, casaca de botões amarellos sobre collete de setim branco; e Carlos entrando uma manhã cedo no Universal, deu com elle pallido de colera, a despropositar com um creado, por causa d'uns sapatos mal envernisados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Damaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, d'olho esperto e duro, já com ares de emprestar a trinta por cento.

Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ás vezes Rachel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deliciosa!» - e dizia-o rilhando o dente: ao marquez não deixava de parecer appetitosa, para uma vez, aquella carnezinha faisandée de mulher de trinta annos: Cruges chamava-lhe uma «lambisgoia relamboria». Nos jornaes, na secção do High-life, ella era «uma das nossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta d'ouro presa por um fio d'ouro, e a sua caleche azul com cavallos pretos. Era alta, muito pallida, sobre tudo ás luzes, delicada de saude, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lyrio meio murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ella deixava habilmente cahir n'uma massa meia solta sobre as costas, como n'um desalinho de nudez. Dizia-se que tinha litteratura, e fazia phrases. O seu sorriso lasso, pallido, constante, dava-lhe um ar de insignificancia. O pobre Ega adorava-a.

Conhecera-a na Foz, na Assembléa; n'essa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou camelia melada; dias depois já adulava o marido; e agora esse demagogo, que

queria o massacre em massa das classes medias, soluçava muita vez por causa d'ella, horas inteiras, cahido para cima da cama.

Em Lisboa, entre o Gremio o a Casa Havaneza, já se começava a fallar «do arranjinho do Ega». Elle todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauções tanta sinceridade como prazer romantico do mysterio: e era nos sitios mais desageitados, fóra de portas, para os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as cartas d'ella... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado com que espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d'aquelle adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca até ahi mencionara o nome d'ella, nem deixara jámais escapar um lampejo de exaltação.

Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:

Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!

Isto fugira-lhe dos labios como um começo de confissão; Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.

Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se immediatamente no puro interesse litterario:

- No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não ha senão o velho Hugo...

Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta de sombra», «avôsinho lyrico», injurias peiores.

Mas n'essa noite o grande phraseador continuou:

- Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heroico de verdades eternas... É

necessario um bocado d'ideal, que diabo!... De resto o ideal póde ser real...

E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro.

Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia - quando do reposteiro da sala d'espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e um rolo de papel na mão.

- Tens que fazer, doutor?

- Não, ía a sahir, janota!

- Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Atomo... Senta-te ahi. Ouve lá.

Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscripto, espalmou-o, deu um puxão ao collarinho - e Carlos, que se pousara á borda do divan, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, n'um bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.

- Mas espera lá! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o cahos...

Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem.

Are sens

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