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Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um montão de livros: a Educação de Spencer ao lado de Beaudelaire, a Logica de Stuart Mill por cima do Cavalleiro da Casa Vermelha. No marmore da commoda havia outra garrafa de Champagne entre dous copos; o toucador, um pouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de pó d'arroz no meio de plastrons e gravatas brancas do Ega, e um masso de ganchos do cabello ao lado de ferros de frisar.

- E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?

- Alli! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.

Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um biombo, ao lado da janella, e tomado todo por uma mesa de pé de gallo, onde Carlos assombrado descobriu, entre o bello papel de cartas do Ega, um Diccionario de Rimas...

E a visita á casa continuou.

Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarello, um armario de pinho envidraçado abrigava melancolicamente um serviço barato de louça nova; e do fecho da janella pendia um vestuario vermelho, que parecia roupão de mulher.

- É sobrio e simples - exclamou o Ega - como compete áquelle que se alimenta d'uma codea d'Ideal e duas garfadas de Philosophia. Agora, á cosinha!...

Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janellas abertas; e entreviam-se arvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois lá em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do collo, ergueu-se, com o Jornal de Noticias na mão. Ega apresentou-a, n'um tom de farça:

- A sr.ª Josepha, solteira, de temperamento sanguineo, artista culinaria da «Villa Balzac», e como se póde observar pelo papel que

lhe pende das garras, cultora das boas letras!

A moça sorria, sem embaraço, habituada de certo a estas familiaridades bohemias.

- Eu hoje não janto cá, senhora Josepha, continuava o Ega no mesmo tom. Este formoso mancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e principe de Santa Olavia, dá hoje de papar ao seu amigo e philosopho... E, como quando eu recolher, talvez a senhora Josepha esteja entregue ao somno da innocencia, ou á vigilia da devassidão, aqui lhe ordeno que me tenha amanhã para meu lunch duas formosas perdizes.

E subitamente, n'uma outra voz, com um olhar que ella devia perceber:

- Duas perdizesinhas bem assadas e bem córadinhas. Frias, está claro... O costume.

Travou do braço de Carlos, voltaram á sala.

- Com franqueza, Carlos, que te parece a «Villa Balzac»?

Carlos respondeu como a respeito do episodio da Hebrea:

- Está ardente.

Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De resto, para um rapaz, para uma cella de trabalho...

- Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as mãos enterradas nos bolsos do seu prodigioso robe de chambre, eu não tolero o bibelot, o bric-à-brac, a cadeira archeologica, essas mobilias d'arte... Que diabo, o movel deve estar em harmonia com a idéa e o sentir do homem que o usa! Eu não penso, nem sinto como um cavalleiro do seculo XVI, para que me hei de cercar de cousas do seculo XVI? Não ha nada que me faça tanta melancolia, como ver n'uma sala um veneravel contador do tempo de Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleições e altas de fundos. Faz-me o effeito d'um bello heroe de armadura d'aço, viseira cahida e crenças profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas. Cada seculo tem o seu genio proprio e a sua attitude propria. O

seculo XIX concebeu a Democracia e a sua attitude é esta... - E enterrando-se d'estalo n'uma poltrona, espetou as pernas magras para o ar. - Ora esta attitude é impossivel n'um escabello do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o Champagne.

E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega accudiu:

- É excellente, que pensas tu? Vem directamente da melhor casa d'Epernay, arranjou-m'o o Jacob.

- Que Jacob?

- O Jacob Cohen, o Jacob.

Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma subita recordação, e pousando a garrafa outra vez, entalando o monocolo no olho:

- É verdade! Então, n'outro dia, que tal, em casa dos Gouvarinhos? Eu infelizmente não poude ir.

Carlos contou a soirée. Havia dez pessoas, espalhadas pelas duas salas, n'um zum-zum dormente, á meia luz dos candieiros. O conde massara-o indiscretamente com a politica, admirações idiotas por um grande orador, um deputado de Mesão Frio, e explicações sem fim sobre a reforma da instrucção. A condessa, que estava muito constipada, horrorisou-o, dando sobre a Inglaterra, apesar de ingleza, as opiniões da rua de Cedofeita. Imaginava que a Inglaterra é um paiz sem poetas, sem artistas, sem ideaes, occupando-se só de amontoar libras... Emfim, seccara-se.

- Que diabo! murmurou o Ega n'um tom de viva desconsolação.

A rolha estalou, elle encheu os copos em silencio; e n'uma saude muda os dois amigos beberam o Champagne - que Jacob arranjara ao Ega, para o Ega se regalar com Rachel.

Depois, de pé, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo novamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar, n'aquella entoação triste de inesperado desapontamento:

- Que ferro!...

E após um momento:

- Pois menino, pensei que a Gouvarinho te appetecia...

Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe fallara d'ella, tivera um caprichosinho, interessara-se por aquelles cabellos côr de brasa...

- Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...

Ega sentara-se, com o copo na mão; e depois de contemplar algum tempo as suas meias de seda, escarlates como as d'um prelado, deixou cair, muito serio, estas palavras:

- É uma mulher deliciosa, Carlinhos.

E, como Carlos encolhia os hombros, Ega insistio: a Gouvarinho era uma senhora de intelligencia e de gosto; tinha originalidade, tinha audacia, uma pontinha de romantismo muito picante...

- E, como corpinho de mulher, não ha melhor que aquillo de Badajoz para cá!

- Vae-te d'ahi, Mephistopheles de Celorico!

E Ega, divertido, cantarolou:

Je suis Mephisto...

Je suis Mephisto...

Carlos no entanto, fumando preguiçosamente, continuava a fallar na Gouvarinho e n'essa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ella tres palavras n'uma sala. E não era a primeira vez que tinha d'estes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor, ameaçando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tedio, em «secca». Eram como os fogachos de polvora sobre uma pedra; uma fagulha atêa-os, n'um momento tornam-se chamma vehemente que parece que vae consumir o Universo, e por fim fazem apenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um d'esses corações de fraco, molles e flaccidos, que não podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-se pelas malhas lassas do tecido relles?

- Sou um ressequido! disse elle sorrindo. Sou um impotente de sentimento, como Satanaz... Segundo os padres da Egreja, a grande tortura de Satanaz é que não póde amar...

- Que phrases essas, menino! murmurou Ega.

Como phrases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixões falharem-lhe nas mãos como phosphoros. Por exemplo, com a coronela de hussards em Vienna! Quando ella faltou ao primeiro rendez-vous, chorara lagrimas como punhos, com a cabeça enterrada no travesseiro e aos coices á roupa. E d'ahi a duas semanas, mandava postar o Baptista á janella do hotel, para elle se safar, mal a pobre coronela dobrasse a esquina! E com a hollandeza, com Madame Rughel, peior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre na Hollanda, casar com ella (apenas ella se divorciasse), outras loucuras; depois os braços que ella lhe deitava ao pescoço, e que lindos braços, pareciam-lhe pesados como chumbo...

- Passa fóra, pedante! E ainda lhe escreves! gritou Ega.

- Isso é outra cousa. Ficamos amigos, puras relações de intelligencia. Madame Rughel é uma mulher de muito espirito. Escreveu um romance, um d'esses estudos intimos e delicados, como os de Miss Brougthon: chama-se as Rosas Murchas. Eu nunca li‚ é em hollandez...

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