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Conhecera-a na Foz, na Assembléa; n'essa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou camelia melada; dias depois já adulava o marido; e agora esse demagogo, que

queria o massacre em massa das classes medias, soluçava muita vez por causa d'ella, horas inteiras, cahido para cima da cama.

Em Lisboa, entre o Gremio o a Casa Havaneza, já se começava a fallar «do arranjinho do Ega». Elle todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauções tanta sinceridade como prazer romantico do mysterio: e era nos sitios mais desageitados, fóra de portas, para os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as cartas d'ella... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado com que espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d'aquelle adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca até ahi mencionara o nome d'ella, nem deixara jámais escapar um lampejo de exaltação.

Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:

Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!

Isto fugira-lhe dos labios como um começo de confissão; Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.

Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se immediatamente no puro interesse litterario:

- No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não ha senão o velho Hugo...

Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta de sombra», «avôsinho lyrico», injurias peiores.

Mas n'essa noite o grande phraseador continuou:

- Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heroico de verdades eternas... É

necessario um bocado d'ideal, que diabo!... De resto o ideal póde ser real...

E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro.

Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia - quando do reposteiro da sala d'espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e um rolo de papel na mão.

- Tens que fazer, doutor?

- Não, ía a sahir, janota!

- Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Atomo... Senta-te ahi. Ouve lá.

Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscripto, espalmou-o, deu um puxão ao collarinho - e Carlos, que se pousara á borda do divan, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, n'um bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.

- Mas espera lá! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o cahos...

Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem.

- Não, não é o primeiro episodio... Não é o cahos. É já no seculo XV... Mas n'um livro d'estes póde-se começar pelo fim... Conveiu-me fazer este episodio: chama-se a Hebrea.

A Cohen! pensou Carlos.

Ega tornou a alargar o collarinho - e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes dos periodos. Depois da sombria pintura d'um bairro medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o Atomo do Ega, apparecia alojado no coração do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de heroe palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabbino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do Geral dos Dominicanos.

Isto contava-o o Atomo n'um monologo, tão recamado d'imagens como um manto da Virgem está recamado d'estrellas - e que era uma declaração d'elle, Ega, á mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio pantheista: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Esther - e de Rachel... Emfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da familia hebraica, atravéz de bosques de bruxas e brutas aldêas feudaes; a apparição, n'uma encrusilhada, do principe Franck que vem proteger Esther, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os seus livros herejes; a batalha, e o principe atravessado pelo chuço d'um reitre, indo morrer no peito d'Esther, que morre com elle n'um beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas d'estylo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas de côr atiradas á larga para fazer ressaltar o tom de vida...

Ao findar o Atomo exclamava, com a vasta solemnidade d'um cheio d'orgão: - «assim arrefeceu, parou, aquelle coração de heroe que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essencia pura d'esse amor immortal.»

- Então?... disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.

Carlos só poude responder:

- Está ardente.

Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Ecclesiastes, de noite, entre as ruinas da torre d'Othon, certas imagens d'um grande vôo lyrico.

Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:

- Então, parece-te apresentavel?...

- Vaes publicar?

- Não, mas emfim... - e ficou n'esta reticencia, fazendo-se corado.

Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma descripção «da leitura feita em casa do exmo. sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episodios do seu livro - As memorias d'um atomo.» E o jornalista accrescentava, dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos soffrimentos porque passaram, nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem a Lei d'Israel.

Que poder de imaginação! Que fluencia d'estylo! O effeito foi extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao succumbir da protagonista - vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!»

Oh, furor do Ega! Rompeu n'essa tarde pelo consultorio, pallido, desorientado...

- Estas bestas! Estas bestas d'estes jornalistas! Leste? Lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica! Faz cahir a cousa em ridiculo... E depois a fluencia d'estylo. Que burros! Que idiotas!

Carlos, que cortava as folhas d'um livro, consolou-o. Aquella era a maneira nacional de fallar d'obras d'arte... Não valia a pena

bramar...

- Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara áquelle folliculario!

- E porque lh'a não quebras?

- É um amigo dos Cohens.

E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indifferença de Carlos:

- Que diabo estás tu ahi a ler? Nature parasitaire des accidents de l'impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo serão umas picadas que me veem aos braços, sempre que vou a adormecer?...

- Pulgas, bichos, vermina... - murmurou Carlos com os olhos no livro.

- Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.

- Vaes-te, John?

- Vou, tenho que fazer! - E junto do reposteiro, ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: - Estes burros d'estes jornalistas! São a escoria da sociedade!

D'ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e já com outra voz, n'um tom de caso serio:

- Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?

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