meditava a Morte de Satanaz, encolhido no seu gabão d'Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.
Os Paços de Cellas, sob a sua apparencia preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma gymnastica scientifica. Uma velha cozinha fôra convertida em sala d'armas - porque n'aquelle grupo a esgrima passava como uma necessidade social. Á noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um whist sério: e no salão, sob o lustre de crystal, com o Figaro, o Times e as Revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os litteratos estirados pelas poltronas - havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flammejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metaphysicas, as proprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquettes.
Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Litteratura e a Arte, sob todas as fórmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto - e um artigo sobre o Parthenon: tentou, n'um atelier improvisado, a pintura a oleo: e compoz contos archeologicos, sob a influencia da Salammbô. Além d'isso todas as tardes passeava os seus dois cavallos. No segundo anno levaria um R se não fosse tão conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intellectual, acantoou-se mais na sciencia que escolhera: immediatamente lhe deram um accessit. Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo: e estava destinado, como dizia João da Ega, a ser um d'esses medicos litterarios que inventam doenças de que a humanidade papalva se presta logo a morrer!
O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas a Cellas. Nos primeiros tempos a sua presença, agradavel aos cavalheiros da partilha de whist, desorganisou o cavaco litterario.
Os rapazes mal ousavam estender o braço para o copo da cerveja; e os vossa excellencia isto, vossa excellencia aquillo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares sympathicos de patriarcha bohemio, discutir arte e litteratura, contar anecdotas do seu tempo d'Inglaterra e d'Italia, começaram a consideral-o como um camarada de barbas brancas. Diante d'elle já se fallava de mulheres e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, tão rico, que lêra Michelet e o admirava - chegou mesmo a enthusiasmar os democratas. E Affonso gozava alli tambem horas felizes, vendo o seu Carlos centro d'aquelles moços de estudo, de ideal e de veia.
Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás vezes em Paris ou Londres; mas por Nataes e Pascoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais só se entretinha a embellezar com amor. As salas tinham agora soberbos pannos d'Arraz, paizagens de
Rousseau e Daubigny, alguns moveis de luxo e d'arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres de parque inglez: através dos macios taboleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia marmores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existencia n'este meio rico não era agora tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, cahia em somnos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e já se não via tambem á mesa a bondosa face do abbade, que lá jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o anno. O dr. juiz de direito com a sua concertina passára para a Relação do Porto; D. Anna Silveira, muito doente, nunca sahia; a Therezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarella como uma cidra; o Euzebiosinho, mollengão e tristonho, já sem vestigios sequer do seu primeiro amor aos alfarrabios e ás letras, ia casar na Regoa. Só o dr. delegado, esquecido n'aquella comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta Eugenia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua egoa branca ao portão para vir cavaquear com o collega.
As ferias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu intimo, o grande João da Ega, a quem Affonso da Maia se affeiçoára muito, por elle e pela sua originalidade, e por ser sobrinho d'André da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outr'ora, hospede tambem em Santa Olavia.
Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente – ora reprovado, ora perdendo o anno. Sua mãi, rica, viuva e beata, retirada n'uma quinta ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viuva e rica tambem, tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capellão affirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e esta promessa bastava á boa senhora, que se occupava sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos d'esse padre Seraphim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que elle escandalisava com a sua irreligião e as suas facecias hereticas.
João da Ega, com effeito, era considerado não só em Celorico, mas tambem na Academia que elle espantava pela audacia e pelos ditos, como o maior atheu, o maior demagogo, que jámais apparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por systema exagerou o seu odio á Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-médias, o amor livre das ficções do matrimonio, a repartição das terras, o culto de Satanaz.
O esforço da intelligencia n'este sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a hysionomia; e, com a sua figura esgrouviada e sêcca, os pêllos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito - tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satanico. Desde a sua entrada na Universidade renovára as tradições da antiga Bohemia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; á noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze annos, filhas de empregados, com quem ás vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de dôce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o appetecido nas familias.
Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem elle terminou por se enredar n'um episodio romantico com a mulher d'um empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graça d'um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ella o que a fantisára fôra o luxo, o groom, a egoa ingleza de Carlos. Trocaram-se cartas; e elle viveu semanas banhado na poesia aspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a
rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe já Eurico o presbytero, dirigiam para Cellas missivas pelo correio com este nome odioso.
Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civil passou junto d'elle com o filhinho pela mão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adoravel, muito gordo, parecendo mais roliço por aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz - rindo todo elle, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pae amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos.
Era no momento em que elle lia Michelet - e enchia-lhe a alma a veneração litteraria da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar alli de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a vergonha, e as lagrimas d'aquelle pobre pae tão inofensivo no seu paletot coçado! Nunca mais respondeu ás cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal.
Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil, d'ahi por diante, dardejava sobre elle olhares sangrentos.
Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse o Ega, foi quando elle, ao fim d'umas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga hespanhola, e a installou n'uma casa ao pé de Cellas. Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mez uma vittoria com um cavallo branco e Encarnacion fanatisou Coimbra como a apparição d'uma Dama das Camelias, uma flôr de luxo das civilisações superiores. Pela Calçada, pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoção, quando ella passava, reclinada na vittoria, mostrando o sapato de setim, um pouco da meia de sêda, languida e desdenhosa, com um cãosinho branco no regaço.
Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada Lirio d'Israel, Pomba da Arca, e Nuvem da Manhã. Um estudante de theologia, rude e sebento transmontano, quiz casar com ella. Apesar das instancias de Carlos, Encarnacion recusou; e o theologo começou a rondar Cellas, com um navalhão, para «beber o sangue» ao Maia.
Carlos teve de lhe dar bengaladas.
Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel, fallando sem cessar d'outras paixões que inspirára em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande posição da sua familia ainda aparentada com os Medina-Coeli: os seus sapatos de setim verde eram tão antipathicos como a sua voz estridula: e quando tentava elevar-se ás conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que não voltava aos Paços de Cellas emquanto por lá apparecesse aquelle montão de carne, pago ao arratel, como a de vacca.
Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surprehendeu-a com um Juca que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi estava, emfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-Coeli, o Lirio d'Israel, a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e á rua de S. Roque, seu elemento natural.
Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Cellas. Affonso viera de Santa Olavia, Villaça de Lisboa; toda a tarde no quintal, d'entre as acacias e as bella-sombras, subiram ao ar mólhos de foguetes; e João da Ega, que levára o seu ultimo R no seu ultimo anno, não descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapesio e em roda do poço, para a illuminacão da noite. Ao
jantar, a que assistiam lentes, Villaça, enfiado e tremulo, fez um speech; ia citar o nosso immortal Castilho quando sob as janellas rompeu, a grande ruido de tambor e pratos, o Hymno Academico. Era uma serenata. - Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu á sacada, a perorar:
- Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma - ou acabar de a matar, segundo as circumstancias! A que parte remota d'estes reinos não chegou já a fama do seu genio, do seu dog-cart, do sebaceo accessit que lhe ennodôa o passado, e d'este vinho do Porto, contemporaneo dos heroes de 20, que eu, homem de revolução e homem de carraspana, eu, João da Ega, Johanes ab Ega...
O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A philarmonica, outros estudantes, invadiram os Paços. Até tarde, sob as arvores do quintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de dôce, não cessou d'estalar o champagne. E
Villaça, limpando a testa, o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo tambem:
- Grande coisa, ter um curso!
E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um anno passou.
Chegára esse outono de 1875: e o avô installado emfim no Ramalhete esperava por elle anciosamente. A ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia elle, a estudar a admiravel organização dos hospitaes de crianças. Assim era: mas passeava tambem por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idyllio errante pelos lagos da Escocia, com uma senhora hollandeza, separada de seu marido, veneravel magistrado da Haya, uma Mme. Rughel, soberba creatura de cabellos d'ouro fulvo, grande e branca como uma nympha de Rubens.
Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas successivas de livros, outras de instrumentos e apparelhos, toda uma bibliotheca e todo um laboratorio - que trazia o Villaça, manhãs inteiras, aturdido pelos armazens da alfandega.
- O meu rapaz vem com grandes idéas de trabalho, dizia Affonso aos amigos.
Havia quatorze mezes que elle o não via, o «seu rapaz», a não ser n'uma photographia mandada de Milão, em que todos o acharam magro e triste. E o coracão batia-lhe forte, na linda manhã de outono, quando do terraço do Ramalhete, de binoculo na mão, viu assomar vagarosamente, por traz do alto predio fronteiro, um grande paquete do Royal Mail que lhe trazia o seu neto.
Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Villaça - não se fartavam d'admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos». Que differença da photographia!
Que forte, que saudavel!
Era decerto um formoso e magnifico moço, alto, bem feito, de hombros largos, com uma testa de marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os olhos dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos como os d'elle e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo - o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma physionomia de bello cavalleiro da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e humido transbordava d'emoção, todo se orgulhava de o vêr, de o ouvir, n'uma larga veia, fallando da viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau humor na Prussia, da originalidade de Moscow, das paizagens da Hollanda...
- E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silencio em que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?
- Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descançar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!
Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o na sala de bilhar - onde tinham sido collocados os caixotes - a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo chão, pelos sophás, alastrava-se toda uma litteratura em rumas de volumes graves; e aqui e além, por entre a palha, através das lonas descozidas, a luz faiscava n'um crystal, ou reluziam os vernizes, os metaes polidos de apparelhos. Affonso pasmava em silencio para aquelle pomposo apparato do saber.
- E onde vaes tu accommodar este museo?
Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio alli perto no bairro, com fornos para trabalhos chimicos, uma sala disposta para estudos anatomicos e physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos, uma concentração methodica de todos os instrumentos de estudo...