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- O marquez não pôde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coitado, está com a sua gôtta, a gôtta de diplomata, de lord e de banqueiro... A gôtta que tu has de ter, velhaco!

Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalçando as luvas, dizendo, que, segundo os inglezes, havia tambem a gôtta de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a elle...

Ega, no entanto, travara-lhe do braço, collocara-o preciosamente á mesa, á sua direita: depois offereceu-lhe um botão de camelia d'um ramo: o Alencar florio-se tambem - e os creados serviram as ostras.

Fallou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impressionava Lisboa, uma rapariga com o ventre rasgado á navalha por uma companheira, vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma viella em sangue - uma sarrabulhada como disse o Cohen, sorrindo e provando o Bucellas.

Damaso teve a satisfação de poder dar detalhes; conhecera a rapariga, a que dera as facadas, quando ella era amante do visconde da Ermidinha... Se era bonita? Muito bonita.

Umas mãos de duqueza... E como aquillo cantava o fado! O peior era que mesmo no tempo do visconde, quando ella era chic, já se empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca lhe perdera a amisade; respeitava-a, mesmo depois de casado ía vel-a, e tinha-lhe promettido que se ella quizesse deixar o fado lhe punha uma confeitaria para os lados da Sé. Mas ella não queria. Gostava d'aquillo, do Bairro Alto, dos cafés de lepes, dos chulos...

Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance...

Isto levou logo a fallar-se do Assommoir, de Zola e do realismo: - e o Alencar immediatamente, limpando os bigodes dos pingos de sôpa, supplicou que se não discutisse, á hora aceada do jantar, essa litteratura latrinaria. Alli todos eram homens d'aceio, de sala, hein? Então, que se não mencionasse o excremento!

Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes analyses, apoderando-se da Egreja, da Realeza, da Bureocracia, da Finança, de todas as cousas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadaveres n'um amphitheatro; esses estylos novos, tão precisos e tão ducteis, apanhando em flagrante a linha, a côr, a palpitação mesma da vida; tudo isso (que elle, na sua confusão mental, chamava a Idéa nova) caíndo assim de chofre e escangalhando a cathedral romantica, sob a qual tantos annos elle tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto litterario da sua velhice. Ao principio reagiu. «Para pôr um dique definitivo á torpe maré», como elle disse em plena Academia, escreveu dois folhetins crueis; ninguem os leu; a «maré torpe» alastrou-se, mais profunda, mais larga. Então Alencar refugiou-se na moralidade como n'uma rocha solida. O

naturalismo, com as suas alluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social?

Pois bem. Elle, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes. Então o poeta das Vozes d'Aurora, que durante vinte annos, em cançoneta e ode, propozera commercios lubricos a todas as damas da capital; então o romancista de Elvira que, em novella e drama, fizera a propaganda do amor illegitimo, representando os deveres conjugaes como montanhas de tedio, dando a todos os maridos fórmas gordurosas e bestiaes, e a todos os amantes a belleza, o esplendor e o genio dos antigos Apollos; então Thomaz Alencar que (a acreditarem-se as confissões autobiographicas da Flôr de Martyrio) passava elle proprio uma existencia medonha de adulterios, lubricidades, orgias, entre velludos e vinhos de Chypre - d'ora em diante austero, incorruptivel, todo elle uma torre de pudicicia, passou a vigiar attentamente o jornal, o livro, o theatro. E mal lobrigava symptomas nascentes de realismo n'um beijo que estalava mais alto, n'uma brancura de saia que se arregaçava de mais - eis o nosso Alencar que soltava por sobre o paiz um grande grito de alarme, corria á penna, e as suas imprecações lembravam (a academicos faceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porém, Alencar teve uma d'estas revelações que prostram os mais fortes; quanto mais elle denunciava um livro como immoral, mais o livro se vendia como agradavel! O Universo pareceu-lhe cousa torpe, e o auctor de Elvira encavacou...

Desde então reduziu a expressão do seu rancor ao minimo, a essa phrase curta, lançada com nojo:

- Rapazes, não se mencione o excremento!

Mas n'essa noite teve o regosijo de encontrar alliados. Craft não admittia tambem o naturalismo, a realidade feia das cousas e da sociedade estatelada nua n'um livro. A arte era uma idealisação! Bem: então que mostrasse os typos superiores d'uma humanidade aperfeiçoada, as fórmas mais bellas do viver e do sentir... Ega horrorisado apertava as mãos na cabeça - quando do outro lado Carlos declarou que o mais intoleravel no realismo eram os seus grandes ares scientificos, a sua pretenciosa esthetica deduzida d'uma philosophia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a proposito d'uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!

Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em ser ainda pouco scientifico, inventar

enredos, crear dramas, abandonar-se á phantasia litteraria! a fórma pura da arte naturalista devia ser a monographia, o estudo secco d'um typo, d'um vicio, d'uma paixão, tal qual como se se tratasse d'um caso pathologico, sem pittoresco e sem estylo!...

- Isso é absurdo, dizia Carlos, os caracteres só se podem manifestar pela acção...

- E a obra d'arte, accrescentou Craft, vive apenas pela fórma...

Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessarias tantas philosophias.

- Vocês estão gastando cêra com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se d'este modo: mão no nariz! Eu quando vejo um d'esses livros, enfrasco-me logo em agua de colonia. Não discutamos o excremento.

- Sole normande? perguntou-lhe o creado, adiantando a travessa.

Ega ía fulminal-o. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estas controversias de litteraturas, calou-se; occupou-se só d'elle, quiz saber que tal elle achava aquelle St. Emilion; e, quando o viu confortavelmente servido de sole normande, lançou com grande alarde de interesse esta pergunta:

- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O emprestimo faz-se ou não se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquella questão do emprestimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episodio historico!...

O Cohen collocou uma pitada de sal á beira do prato, e respondeu, com auctoridade, que o emprestimo tinha de se realisar absolutamente. Os emprestimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensavel, tão sabida como o imposto. A unica occupação mesmo dos ministerios era esta - cobrar o imposto e fazer o emprestimo. E assim se havia de continuar...

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, d'esse modo, o paiz ia alegremente e lindamente para a banca-rota.

- N'um galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguem tem illusões, meu caro senhor.

Nem os proprios ministros da fazenda!... A banca-rota é inevitavel: é como quem faz uma somma...

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o calice de novo, fincara os cotovellos na meza para lhe beber melhor as palavras.

- A banca-rota é tão certa, as cousas estão tão dispostas para ella - continuava o Cohen -

que seria mesmo facil a qualquer, em dois ou tres annos, fazer fallir o paiz...

Ega gritou soffregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionaria constante; nas vesperas de se lançarem os emprestimos haver duzentos maganões decididos que cahissem á pancada na municipal e quebrassem os candieiros com vivas á Republica; telegraphar isto em letras bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro, e a banca-rota estalava.

Sómente, como elle disse, isto não convinha a ninguem.

Então Ega protestou com vehemencia. Como não convinha a ninguem? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! Á banca-rota seguia-se uma revolução, evidentemente. Um paiz que vive da inscripção, em não lh'a pagando, agarra no cacete; e procedendo por principio, ou procedendo apenas por vingança - o primeiro cuidado que tem é varrer a monarchia que lhe representa o calote, e com ella o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, d'essa collecção grotesca de bestas...

A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados de grotescos, de bestas, os homens d'ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente, elle era o primeiro a dizel-o, em toda essa gente que figurava desde 46 havia mediocres e patetas, - mas tambem homens de grande valor!

- Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de experiencia. Você deve reconhecel-o, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, ha talento, ha saber.

E, lembrando-se que algumas d'essas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar porém cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia para idéas radicaes, para a democracia humanitaria de 1848: por instincto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no romantismo politico, como n'um asylo pararello: queria uma republica governada por genios, a fraternisação dos povos, os Estados Unidos da Europa... Além d'isso, tinha longas queixas d'esses politiquotes, agora gente de Poder, outr'ora seus camaradas de redacção, de café e de batota...

- Isso, disse elle, lá a respeito de talento e de saber, historias... Eu conheço-os bem, meu Cohen...

O Cohen acudiu:

- Não senhor, Alencar, não senhor! Você tambem é dos taes... Até lhe fica mal dizer isso... É exageração. Não senhor, há talento, ha saber.

E o Alencar, perante esta intimação do Cohen, o respeitado director do Banco Nacional, o marido da divina Rachel, o dono d'essa hospitaleira casa da rua do Ferregial onde se jantava tão bem, recalcou o despeito - admittiu que não deixava de haver talento e saber.

Então, tendo assim, pela influencia do seu Banco, dos bellos olhos da sua mulher e da excellencia do seu cosinheiro, chamado estes espiritos rebeldes ao respeito dos Parlamentares e á veneração da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o paiz necessitava reformas...

Ega porém, incorrigivel n'esse dia, soltou outra enormidade:

- Portugal não necessita refórmas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão hespanhola.

Alencar, patriota á antiga, indignou-se. O Cohen, com aquelle sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, vio alli apenas «um dos paradoxos do nosso Ega.» Mas o Ega fallava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia elle, invasão não significa perda absoluta de independencia. Um receio tão estupido é digno só de uma sociedade tão estupida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um paiz que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguem consentiria em deixar cahir nas mãos de Hespanha, nação militar e maritima, esta bella linha de costa de Portugal. Sem contar as allianças que teriamos, a troco das colonias - das colonias que só nos servem, como a prata de familia aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise...

Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, n'um momento de guerra europea, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnisação, perdermos uma ou duas provincias, ver talvez a Galliza estendida até ao Douro...

- Poulet aux champignons, murmurou o creado, apresentando-lhe a travessa.

E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elle a salvação do paiz, nessa catastrophe que tornaria povoação

hespanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heroes, berço dos Egas...

- N'isto: no ressuscitar do espirito publico e do genio portuguez! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tinhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bella situação nos achavamos! Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da inscripção, porque tudo desapparecia, estavamos novos em folha, limpos, escarollados, como se nunca tivessemos servido. E recomeçava-se uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal serio e intelligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilisação como outr'ora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tarêa... Oh Deus d'Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o St. Emilion.

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