- Não, não é o primeiro episodio... Não é o cahos. É já no seculo XV... Mas n'um livro d'estes póde-se começar pelo fim... Conveiu-me fazer este episodio: chama-se a Hebrea.
A Cohen! pensou Carlos.
Ega tornou a alargar o collarinho - e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes dos periodos. Depois da sombria pintura d'um bairro medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o Atomo do Ega, apparecia alojado no coração do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de heroe palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabbino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do Geral dos Dominicanos.
Isto contava-o o Atomo n'um monologo, tão recamado d'imagens como um manto da Virgem está recamado d'estrellas - e que era uma declaração d'elle, Ega, á mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio pantheista: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Esther - e de Rachel... Emfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da familia hebraica, atravéz de bosques de bruxas e brutas aldêas feudaes; a apparição, n'uma encrusilhada, do principe Franck que vem proteger Esther, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os seus livros herejes; a batalha, e o principe atravessado pelo chuço d'um reitre, indo morrer no peito d'Esther, que morre com elle n'um beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas d'estylo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas de côr atiradas á larga para fazer ressaltar o tom de vida...
Ao findar o Atomo exclamava, com a vasta solemnidade d'um cheio d'orgão: - «assim arrefeceu, parou, aquelle coração de heroe que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essencia pura d'esse amor immortal.»
- Então?... disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.
Carlos só poude responder:
- Está ardente.
Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Ecclesiastes, de noite, entre as ruinas da torre d'Othon, certas imagens d'um grande vôo lyrico.
Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:
- Então, parece-te apresentavel?...
- Vaes publicar?
- Não, mas emfim... - e ficou n'esta reticencia, fazendo-se corado.
Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma descripção «da leitura feita em casa do exmo. sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episodios do seu livro - As memorias d'um atomo.» E o jornalista accrescentava, dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos soffrimentos porque passaram, nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem a Lei d'Israel.
Que poder de imaginação! Que fluencia d'estylo! O effeito foi extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao succumbir da protagonista - vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!»
Oh, furor do Ega! Rompeu n'essa tarde pelo consultorio, pallido, desorientado...
- Estas bestas! Estas bestas d'estes jornalistas! Leste? Lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica! Faz cahir a cousa em ridiculo... E depois a fluencia d'estylo. Que burros! Que idiotas!
Carlos, que cortava as folhas d'um livro, consolou-o. Aquella era a maneira nacional de fallar d'obras d'arte... Não valia a pena
bramar...
- Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara áquelle folliculario!
- E porque lh'a não quebras?
- É um amigo dos Cohens.
E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indifferença de Carlos:
- Que diabo estás tu ahi a ler? Nature parasitaire des accidents de l'impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo serão umas picadas que me veem aos braços, sempre que vou a adormecer?...
- Pulgas, bichos, vermina... - murmurou Carlos com os olhos no livro.
- Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.
- Vaes-te, John?
- Vou, tenho que fazer! - E junto do reposteiro, ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: - Estes burros d'estes jornalistas! São a escoria da sociedade!
D'ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e já com outra voz, n'um tom de caso serio:
- Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?
- Não tenho um interesse especial, respondeu Carlos, erguendo os olhos do livro, depois de um silencio. Mas não tenho tambem uma repugnancia especial.
- Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho...
Gente intelligente, passa-se lá bem... Então, decidido.! Terça feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos gouvarinhar.
Carlos ficou pensando n'aquella proposta do Ega, na maneira como elle sublinhára o empenho da condessa. Lembrava-se agora que ella era muito intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, n'aquella facil visinhança de frisa, surprehendera certos olhares d'ella... Mesmo, segundo o Taveira, ella realmente fazia-lhe um olhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabellos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, d'um grande brilho, dizendo mil cousas. Era deliciosamente bem feita - e tinha uma pelle muito clara, fina e doce á vista, a que se sentia mesmo de longe o setim.
Depois d'aquelle dia tristônho de aguaceiros, elle resolvera passar um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas, ao café, os olhos da Gouvarinho começaram a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão, collocando-se tentadoramente entre elle a sua noite d'estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse Mephistopheles de Celorico!
Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém á boca da frisa, preparado, de collete branco e perola negra na camisa, - em logar dos cabellos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze annos, trombudo e lusidio, de grande collarinho á mamã sobre uma jaqueta de botões amarellos; ao lado outro preto, mais pequeno, com o mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta aberta o dedo calçado de pellica pranca. Ambos elles lhe relancearam os olhos bogalhudos, côr de prata embaciada.
A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia ter um catharro ascoroso.
Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham vindo -
nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar alli, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher solitaria, vestida de setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gaz dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo tambem.
- Isto está lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que occupava o escuro da frisa.