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- Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, n'essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quiz ser enterrado em Sta.

Olavia, ahi está. Não queria que o filho jámais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de certo, nunca o saberá. Quiz que dois retratos que havia d'ella em Arroios fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas não me pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que n'um momento de loucura, o papá tinha dado um tiro em si...

- E elle?

- E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhã para lhe dar tambem uma pistola... E ahi está o resultado d'essa revelação: é que tive de mandar vir do Porto uma pistola de vento...

Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.

Villaça ao outro dia partiu para Lisboa.

Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador, trasendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a Mme. de l'Estorade, contara-lhe que no

boudoir d'ella havia um adoravel retrato de creança, de olhos negros, cabello d'azeviche, e uma pallidez de nacar. Esta pintura ferira-o, não só por ser d'um grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerario, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no boudoir: e elle perguntara á Monforte se era um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão assim dissipadas todas as duvidas, accrescentava o Villaça. O pobre anjinho está n'uma patria melhor. E para ella, bem melhor!»

Affonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo André procurara Mme.de l'Estorade, havia semanas que ella partira para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no Club Imperial, a que elle pertencia, um amigo que conhecia bem Mme. de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acrobata do Circo d'Inverno nos campos Elyseos, homem de fórmas magnificas, um Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam e que a Monforte empolgára. Naturalmente corria agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos.

Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao Villaça sem um commentario. E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª rasão, é atroz: e mais vale suppor que todos morreram, e não gastar mais cera com tão ruins defuntos...» E depois n'um post-scriptum accrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, ahi irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias d'hospitalidade.»

Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Affonso lera alto o P.S.

Todos se alegraram,na esperança de ver o bom Villaça em breve na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.

Mas, terça feira á noite, chegava um telegramma de Manuel Villaça annunciando que o pae morrera, n'essa manhã, d'uma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço que, de repente, Villaça se sentira muito suffocado e com tonturas: ainda tivera forças d'ir ao quarto respirar um pouco d'ether: mas ao voltar á sala cambaleava, queixava-se de vêr tudo amarello, e caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda n'esse momento se occupou da casa que ha trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d'uma venda de cortiça, recomendações que o filho já não poude perceber: depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!

Affonso da Maia ficou profundamente affectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre os creados, a morte de Villaça foi como um lucto domestico. Uma d'essas tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados

- quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas num papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço, e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Villaça não voltaria a vel-os á quinta.

- Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vêr.

O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:

- O Villaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vôvô, para onde o levaram?

- Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.

Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito sério, com os olhos n'elle:

- Ó vôvô! porque não lhe mandas fazer uma capellinha bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?

O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido:

- Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!

Assim o bom Villaça teve no cemiterio dos Prazeres o seu jazigo - que fôra a alta ambição da sua existencia modesta.

Outros annos tranquillos passaram sobre Santa Olavia.

Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel Villaça (agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso se hospedára com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando:

- Neminè! Neminè!

Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os senhores de Santa Olavia correu á porta, abraçou-se quasi chorando no menino, agora mais alto que elle, e muito formoso na sua batina nova.

Em cima no quarto, Manuel Villaça, soprando ainda, limpando as bagas de suor, exclamava:

- Ficou tudo espantado, snr. Affonso da Maia! Os lentes até estavam commovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, é o que todo o mundo disse... E que faculdade vai elle seguir, meu senhor?

Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:

- Não sei, Villaça... Talvez nos formemos ambos em Direito.

Carlos assomou á porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro - que trazia champagne n'uma salva.

- Então venha cá, seu maroto, disse Affonso muito branco, com os braços abertos. Bom exame, hein?... Eu...

Mas não pôde proseguir: as lagrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca.

IV

Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera sempre n'aquelle menino realmente uma «vocação para Esculapio».

A «vocação» revelára-se bruscamente um dia que elle descobriu no sotão, entre rumas de velhos alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatomicas; tinha passado dias a recortal-as, pregando pelas paredes do quarto figados, liaças de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio á mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em triumpho, a mostrar ás Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa lithographia de um feto de seis mezes no utero materno. D. Anna recuou, com um grito, collando o leque á face: e o dr.

delegado, escarlate tambem, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia de Affonso.

- Então que tem, então que tem? dizia elle sorrindo.

- Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou D. Anna. São indecencias!

- Não ha nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorancia...

Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre machina por dentro, não ha nada mais louvavel...

D. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a apparecer-lhe como um libertino «que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Therezinha brincasse só com elle pelos corredores de Santa Olavia.

As pessoas sérias porém, o dr. juiz de direito, o proprio abbade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquillo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.

- Se péga, dizia então com um gesto prophetico o dr. Trigueiros, temos d'alli coisa grande!

E parecia pegar.

Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava os seus compendios de logica e rhetorica para se occupar de anatomia: n'umas ferias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras d'um casaco o riso d'uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnosticos que o bom dr.

Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino «o seu talentoso collega».

Esta inesperada carreira de Carlos (pensára-se sempre que elle tomaria capello em Direito) era pouco approvada entre os fieis amigos de Santa Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom cavalleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias. O dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que o snr. Carlos da Maia quizesse «ser medico a sério».

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