Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra sobre o collete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto
ao toucador onde o Villaça acamava as duas longas repas sobre a calva:
- Sabe v. s.ª, apenas veiu o mestre inglez, o que lhe ensinou? A remar! A remar, sr.
Villaça, como um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as habilidades de palhaço; eu n'isso nem gosto de fallar... Que eu sou o primeiro a dizel-o: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excellente musico. Mas é o que eu tenho repetido á Gertrudes: póde ser muito bom para inglez, não é para ensinar um fidalgo portuguez... Não é. Vá v. s.ª fallar a esse respeito com a sr.ª D. Anna Silveira...
Bateram de manso á porta, o Teixeira emmudeceu. Um escudeiro entrou, fez um signal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ella junto do toucador, onde o Villaça, vermelho e apressado, luctava ainda com as repas rebeldes.
O Teixeira, da porta, disse com o relogio na mão:
- É o jantar. Tem v. s.ª dois minutos, sr. Villaça.
E o administrador d'ahi a um momento abalava tambem, abotoando ainda o casaco pelas escadas.
Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavallo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande historia de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abbade Custodio, com o lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de bocca aberta, n'um riso paternal e terno.
- Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso.
O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada na côxa:
- Esta é nova! Então é o nosso Villaça? E não me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos, homem!...
Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aquelles longos abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos – uma com as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande corôa aberta n'uma matta de cabello branco. E como elles, de mãos dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos annos, Affonso disse:
- Villaça! a sr.ª viscondessa...
O administrador porém procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mãos: - e Villaça descobriu-a emfim a um canto, entre o aparador e a janella, sentada n'uma cadeirinha baixa, vestida de preto, timida e queda, com os braços rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel, as roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; não achou uma palavra para dizer ao Villaça, e estendeu-lhe a mão papuda e pallida, com um dedo embrulhado n'um pedaço de seda negra. Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaço, como exhausta d'aquelle esforço.
Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Affonso.
Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra historia. Era o Manuel, trazia uma pedra na mão... Elle primeiro pensára ir ás boas; mas os dois rapazes começaram a rir... De maneira que os correu a todos...
- E maiores que tu?
- Tres rapagões, vôvô, póde perguntar á tia Pedra... Ella viu, que estava na eira. Um d'elles trazia uma foice...
- Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados... Vá, desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!
E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarcha feliz, veiu sentar-se ao alto da meza, sorrindo e dizendo:
- Já se vae fazendo pesado, já não está para collo...
Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentação do procurador.
- O sr. Brown, o amigo Villaça... Peço perdão, descuidei-me, foi culpa d'aquelle cavalheiro lá ao fundo da meza, o sr. D. Carlos de mata-sete!
O perceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta á meza, rigido e teso, para vir sacudir o Villaça n'um tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reoccupou o seu logar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidaveis bigodes, e foi então que disse ao Villaça, com o seu forte accento inglez:
- Muito bello dia... glorioso!
- Tempo de rosas, respondeu o Villaça, comprimentando, intimidado diante d'aquelle athleta.
Naturalmente, n'esse dia, fallou-se da jornada de Lisboa, do bom serviço da malla-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O Villaça já viera no comboyo até ao Carregado.
- De causar horror, hein? perguntou o abbade, suspendendo a colher que ia levar á bocca.
O excellente homem nunca saira de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para além da penumbra da sua sachristia e das arvores do seu passal, lhe dava o terror d'uma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto se fallava...
- Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia Villaça. Digam o que disserem, faz arripiar!
Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis desgraças d'essas machinas!
O Villaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaça, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de caridade! Emfim de todos os modos havia perigos.
Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto...
O abbade gostava do progresso... Achava até necessario o progresso. Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo á lufa-lufa... O paiz não estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas...
- E economia! disse o Villaça, puxando para si os pimentões.
- Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro.
O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe á luz a côr rica, provou-o com a ponta do labio, e piscando o olho para Affonso:
- É do nosso!
- Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom nectar?