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E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quando Custodio jantava na quinta.

O bom homem achava horroroso que n'aquella edade um tão lindo moço, herdeiro d'uma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Villaça a historia da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão, tendo passado deante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de creanças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contricção. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira fallar! Estas cousas entristeciam. E o sr. Affonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora alli estava o amigo Villaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o sr. Affonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas d'uma cousa não o podia convencer, a elle pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do cathecismo.

E Affonso da Maia respondia com bom humor:

- Então que lhe ensinava você, abbade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?...

- Ha mais alguma cousa...

- Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um peccado que offende a Deus, já elle sabe que se não deve praticar, por que é indigno d'um cavalheiro e d'um homem de bem...

- Mas, meu senhor...

- Ouça abbade. Toda a differença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo ás caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu...

E accrescentou, erguendo-se e sorrindo:

- Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade, é quando vem, depois de semanas de chuva, um dia d'estes, ir respirar pelos campos e não estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o Villaça não está muito cançado, vamos dar ahi um giro pelas fazendas...

O abbade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho;

depois olhou a chavena e sorveu com delicias o resto do seu café.

Quando Affonso da Maia, Villaça e o abbade recolheram do seu passeio pela freguezia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado já as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaça.

D. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da familia, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande auctoridade em Resende. A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma excellente e pachorrenta senhora, de agradavel nutrição, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Theresinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabellos negros como tinta, e o morgadinho, o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada n'aquelles sitios.

Quasi desde o berço este notavel menino revelara um edificante amor por alfarrabios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n'um cobertor, folheando in-folios, com o craneosinho calvo de sabio curvado sobre as lettras garrafaes de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal proposito que permanecia horas immovel n'uma cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca appetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a lingoasinha de fora.

Assim na familia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Annica installava-o logo á mesa, ao pé do candieiro, a admirar as pinturas d'um enorme e rico volume, os Costumes de todos os povos do Universo. Já lá estava essa noite, vestido como sempre de escossez, com o plaid de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracollo e preso ao hombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre d'um Stuart, d'um valoroso cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante penna de gallo; e nada havia mais melancolico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma molleza e uma amarellidão de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a sciencia lh'as tivesse já consummido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia, e para os guerreiros ferozes do Montenegro appoiados a escupetas, em pincaros de serranias.

Deante do canapé das senhoras lá se achava tambem o fiel amigo, o dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco annos andava ponderando e meditando o casamento com a Silveira viuva, sem se decidir - contentando-se em comprar todos os annos mais meia duzia de lençoes, ou uma peça mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, á brazeira: e as allusões recatadas, mas inevitaveis, ás duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençoes, aos cobertores de papa para os conchegos de janeiro

- em logar de inflammar o magistrado, inquietavam-n'o. Nos dias seguintes apparecia preoccupado - como se a perspectiva da santa consummação do matrimonio lhe désse o arrepio de uma façanha a emprehender,o ter de agarrar um toiro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquer rasão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte. E alliviado, tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a chás, festas de egreja ou pezames, vestido de preto, affavel, serviçal, sorrindo a D. Eugenia, não desejando mais prazeres que os d'essa convivencia paternal.

Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o dr. juiz de direito e a senhora não podiam vir, por que o magistrado tivera a dôr; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer desesete annos que morrera o mano Manuel...

- Bem, disse Affonso, bem. A dôr, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nós um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso dr. delegado?

O excellente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava ás ordens.»

- Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade, esfregando as mãos, no ardor já da partida.

Os parceiros dirigiram-se á saleta do jogo - que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos circulos de luz que cahiam dos abat-jour os baralhos abertos em leque. D'ahi a um momento o dr. delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho de tres»; e retomou o seu logar ao lado de D.

Eugenia, cruzando os pés debaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam fallando da dôr do dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os tres mezes: e era condemnavel a sua teima em não querer consultar medicos. Quanto mais que elle andava acabado, ressequindo, amarellando - e a D. Augusta, a mulher, a nutrir á larga, a ganhar côres!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapé, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Hespanha vira um caso egual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fôra o contrario; até sobre isso se tinham feito uns versos...

- Humores, disse com melancolia o dr. delegado.

Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E que perfeição de rapaz! E

que rapaz de juizo! D. Anna Silveira não se esquecera, como todos os annos, de lhe accender uma lamparina por alma, e de lhe resar

tres padre-nossos. A viscondessa pareceu toda afflicta por se não ter lembrado... E ella que tinha o proposito feito!

- Pois estive para t'o mandar dizer! exclamou D. Anna. E as Brancos que tanto o agradecem, filha!

- Ainda está a tempo, observou o magistrado.

D. Eugenia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e murmurou com um suspiro:

- Cada um tem os seus mortos.

E no silencio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se recordára do fidalgo d'Urigo de la Sierra, e murmurava:

- Cada um tem os seus mortos...

E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente, depois de passar reflectidamente a mão pela calva:

- Cada um tem os seus mortos!

Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chammas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiosinho voltava com cautella e arte as estampas dos Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, atravez do reposteiro aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abbade, rosnando com um rancor tranquillo, «passo, que é o que tenho feito toda a santa noite!»

N'esse momento Carlos arremettia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Theresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canapé dormente.

Os noivos tinham chegado d'uma pittoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se d'uma maneira atroz; quando elle ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se ao pé d'elle na almofada... Ora senhoras não viajam na almofada.

- E elle atirou-me ao chão, titi!

- Não é verdade! De mais a mais é mentirosa! Foi como quando chegámos á estalagem... Ella quiz-se deitar, e eu não quiz... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira cousa que faz é tratar do gado... E os cavallos vinham a escorrer...

A voz de D. Anna interrompeu, muito severa:

- Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavallaram bastante. Senta-te ahi ao pé da sr.ª

Viscondessa, Thereza... Olhe essa travessa do cabello... Que desproposito!

Sempre detestára ver a sobrinha, uma menina delicada de dez annos, brincar assim com o Carlinhos. Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem proposito, aterrava-a; e pela sua imaginação de solteirona passavam sem cessar idéas, suspeitas de ultrages que elle poderia fazer á menina. Em casa, ao agasalhal-a antes de vir para Sta. Olavia, recommendava-lhe com força que não fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o não deixasse mecher-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na quinta, gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados, por que não haviam de fazer néné, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras lançadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros que o Brown lhe ensinava. Ella, despeitada, vendo o seu

coração mal comprehendido, chamava-lhe arrieiro; elle ameaçava boxal-a, á ingleza; - e separavam-se sempre arrenegados.

Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mãos no regaço - Carlos veiu logo estirar-se ao pé d'ella, meio deitado para as costas do canapé, bamboleando as pernas.

- Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito secca D. Anna.

- Estou cançado, governei quatro cavallos, replicou elle, insolente e sem a olhar.

De repente porém, d'um salto, precipitou-se sobre o Eusebiosinho. Queria-o levar á Africa, a combatter os selvagens: e puchava-o já pelo seu bello plaid de cavalleiro d'Escossia, quando a mamã accudiu atterrada.

Are sens