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- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.

0 velho correu, logo; e d'ahi a pouco apparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e côr de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.

Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no collo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora só havia alli aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos braços...

- Como se chama elle?

- Carlos Eduardo, murmurou a ama.

- Carlos Eduardo, hein?

Ficou a olha-lo muito tempo, como procurando n'elle os signaes da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãosinhas vermelhas

que não largavam o guiso, e muito grave, como se a creança o percebesse, disse-lhe:

- Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessario amar o avô!

E áquella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãosinha, e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o guiso.

Toda a face do velho sorria áquella viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo d'avô; depois, com todo o cuidado, foi collocal-o nos braços da ama.

- Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto, vá vêr o que é necessario.

Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sophá, nem despregára os olhos do chão.

- Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos ha tres annos, filho...

- Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.

Ergueu-se, allongou a vista á quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amargamente:

- Tinha razão, meu pae, tinha razão...

E pouco a pouco, passeiando e suspirando, começou a fallar d'aquelles ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera só idéas de sangue e quizera perseguil-os. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridiculo, não é verdade? De certo a fuga fora d'antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa á busca de sua mulher... Ir lamentar-se á policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade; nem impedia que ella fosse já por esses caminhos fóra dormindo com outro... Restava-lhe sómente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar consolado e forte.

Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado nos dedos, n'uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae, com um riso secco, um brilho feroz nos olhos.

- Sempre desejei ver a America, e é boa occasião agora... É uma occasião famosa, hein?

Posso até naturalisar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!

- Sim, mais tarde, depois pensarás n'isso, filho, accudiu o velho assustado.

N'esse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.

- Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.

Teve um suspiro cançado e lento, murmurou:

- Nós jantavamos ás sete...

Quiz então que o pae fosse para a mesa. Não havia motivo para que se não jantasse.

Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...

- O Teixeira que me leve um calice de genebra... Ainda cá está o Teixeira, coitado!

E vendo Affonso sentado, repetiu, já impaciente:

- Vá jantar meu pae, vá jantar, pelo amor de Deus...

Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o ruido de janellas desabridamente abertas.

Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada d'uma casa onde ha morte. Affonso sentou-se á mesa só; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se n'um vaso do Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro.

Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco n'aquelle melancolico crepusculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as cousas terriveis que assim invadiam n'um tropel pathetico a sua paz de velho. Mas no meio da sua dôr, funda como era, elle percebia um ponto, um recanto do seu coração onde alguma cousa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria á chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...

Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes. Já inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão humido e frio, como se a chuva caisse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veiu do negro da janella: estava lá, com a vidraça aberta, sentado fóra na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a agua, toda a invernia agreste.

- Pois estás aqui filho! exclamou Affonso. Os criados hão de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todo molhado, Pedro!

Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se, impaciente d'aquella ternura do velho.

- Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!

O Teixeira trouxe luzes, e atraz d'elle appareceu o criado de Pedro, que chegára n'esse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera tambem, como nenhum dos senhores estava em casa...

- Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. Villaça lá irá amanhã, e elle dará as ordens.

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