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Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro voltou a fallar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir a Bemfica recuperar para sempre aquelle papá tão teimoso...

- Ainda não, disse ella reflectindo, olhando o seu calice de Bordeus. Teu pae é uma especie de santo, ainda o não merecemos...

Mais para o inverno.

Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Affonso da Maia estava no seu escriptorio lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face livida, sob os cabellos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pae, rompeu a chorar perdidamente.

- Pedro! que succedeu, filho?

Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, á idéa do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo á sua solidão os dois netos, toda uma descendencia para amar! E repetia, tremulo tambem, desprendendo-o de si com grande amor:

- Socega, filho, que foi?

Pedro então cahiu para o canapé, como cae um corpo morto; e levantando para o pae um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, n'uma voz surda:

- Estive fóra de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!

Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bella face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de uma grande colera. Viu, n'um relance, o escandalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E

era aquelle filho que, despresando a sua auctoridade, ligando-se a essa creatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E alli estava! alli jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem trahido! Vinha atirar-se para um sophá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passeiar pela sala, rigido e aspero, cerrando os labios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto... - Mas era pae: ouvia, alli ao seu lado, aquelle soluçar de funda dôr; via tremer aquelle pobre corpo desgraçado que elle outr'ora emballara nos braços; - parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se elle fosse ainda creança, restituindo-lhe alli e para sempre a sua ternura inteira.

- Tinha razão, meu pae, tinha razão, murmurava Pedro entre lagrimas.

Depois ficaram callados. Fóra, as pancadas successivas da chuva batiam a casa, a quinta, n'um clamor prolongado; e as arvores, sob as janellas, ramalhavam n'um vasto vento de inverno.

Foi Affonso que quebrou o silencio:

- Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...

- Não sei nada, respondeu Pedro n'um longo esforço. Sei que fugiu. Eu sahi de Lisboa na segunda feira. N'essa mesma noite, ella partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma creada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse á governante e á ama do pequeno que ia ter comigo. Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.

Era um papel já sujo, e desde essa manhã de certo muitas vezes relido, amarrotado com furia. Continha estas palavras:

«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, e levo a Maria que me não posso separar d'ella.»

- E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou Affonso.

Pedro pareceu recordar-se:

- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.

0 velho correu, logo; e d'ahi a pouco apparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e côr de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.

Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no collo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora só havia alli aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos braços...

- Como se chama elle?

- Carlos Eduardo, murmurou a ama.

- Carlos Eduardo, hein?

Ficou a olha-lo muito tempo, como procurando n'elle os signaes da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãosinhas vermelhas

que não largavam o guiso, e muito grave, como se a creança o percebesse, disse-lhe:

- Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessario amar o avô!

E áquella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãosinha, e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o guiso.

Toda a face do velho sorria áquella viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo d'avô; depois, com todo o cuidado, foi collocal-o nos braços da ama.

- Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto, vá vêr o que é necessario.

Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sophá, nem despregára os olhos do chão.

- Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos ha tres annos, filho...

- Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.

Ergueu-se, allongou a vista á quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amargamente:

- Tinha razão, meu pae, tinha razão...

E pouco a pouco, passeiando e suspirando, começou a fallar d'aquelles ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera só idéas de sangue e quizera perseguil-os. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridiculo, não é verdade? De certo a fuga fora d'antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa á busca de sua mulher... Ir lamentar-se á policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade; nem impedia que ella fosse já por esses caminhos fóra dormindo com outro... Restava-lhe sómente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar consolado e forte.

Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado nos dedos, n'uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae, com um riso secco, um brilho feroz nos olhos.

- Sempre desejei ver a America, e é boa occasião agora... É uma occasião famosa, hein?

Posso até naturalisar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!

- Sim, mais tarde, depois pensarás n'isso, filho, accudiu o velho assustado.

N'esse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.

- Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.

Teve um suspiro cançado e lento, murmurou:

- Nós jantavamos ás sete...

Quiz então que o pae fosse para a mesa. Não havia motivo para que se não jantasse.

Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...

- O Teixeira que me leve um calice de genebra... Ainda cá está o Teixeira, coitado!

E vendo Affonso sentado, repetiu, já impaciente:

Are sens