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E havia agora uma idéa que, a seu pesar, ás vezes o torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario, com que na casa se mettia medo ás creanças,enlouquecera - e julgando-se Judas enforcara-se n'uma figueira...

Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor á Romeu, vindo de repente n'uma troca de olhares fatal e deslumbradora, uma d'essas paixões que assaltam uma existencia, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a rasão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abysmos.

N'uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, á porta de Mme. Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéo branco, e uma senhora loira, embrulhada num chale de Cashmira.

O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada d'antigo embarcadiço e o ar gôche, desceu todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ella voltando de vagar a cabeça olhou um momento o Marrare.

Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros, d'um oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e classica: os olhos maravilhosos illuminavam-n'a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida a carnação de marmore: e com o seu perfil grave de estatua, o modelado nobre dos hombros e dos braços que o chale cingia - pareceu a Pedro n'eses instantes alguma cousa d'immortal e superior á terra.

Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado á outra hombreira, n'uma pose de tedio - vendo o violento interesse de Pedro, o olhar acceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veiu tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto á face, na sua voz grossa e lenta:

- Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principaes? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de Champagne?

Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anneis da cabelleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puchão aos punhos:

- Por uma dourada tarde d'outomno...

- André, gritou Pedro ao creado, martellando o marmore da mesa, retira o Champagne!

O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio:

- O quê! Sem saciar a avidez de meu labio?...

Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das Vozes d'Aurora, explicaria aquella gente da caleche azul n'uma linguagem christã e pratica!...

- Ahi vae, meu Pedro, ahi vae!

Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquelle velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa n'aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu lado. Ninguem os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão – uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar!

Quando ella atravessava o salão os hombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha d'aquella magnifica creatura, arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de côrte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de joias.

O papá nunca lhe dava o braço: seguia atraz, entalado n'uma grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que sahia da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos o oculo, o libretto, um saco de bonbons, o leque e o seu proprio guardachuva. Mas era no camarote, quando a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas tranças de oiro, que ella offerecia verdadeiramente a encarnação d'um ideal da Renascença, um modelo de Ticiano... Elle, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ella e ás outras, ás trigueirotas da assignatura:

- Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D.

João VI!

O Magalhães, esse torpe pirata, pozera o dito n'um folhetim do Portuguez. Mas o dito era d'elle, Alencar!

Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca n'aquella casa se abria uma janella. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manoel. Emfim uma creada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia deante da filha, e dormia n'uma rêde; a senhora, essa, vivia n'um ninho de sedas todo azul-ferrête, e passava o seu dia a ler novellas. Isto não podia satisfazer a soffreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa methodica, habil, paciente... Elle, Alencar, pertencera á devassa.

E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores: muito moço, uma facada n'uma rixa, um cadaver a uma esquina tinham-n'o forçado a fugir a bordo d'um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera

nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrára lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo caes, de chinellas de esparto, á procura de embarque para a Nova-Orleans.

Aqui havia uma treva na historia do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor n'uma plantação da Virginia... Emfim, quando reappareceu á face dos céos commandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brazil, para a Havana e para a Nova Orleans.

Escapara aos cruzeiros inglezes, arrancára uma fortuna da pelle do africano, e agora rico, homem de bem, proprietario, ia ouvir a

Corelli a S. Carlos. Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...

- E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, serio e pallido.

Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão loira e bella? Quem fôra a mamã? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?...

- Isso, meu Pedro, são

mysterios que jámais poude Lisboa

astuta devassar e só Deus sabe!

Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e negros, o enthusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em villipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas joias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ella apparecia agora no theatro, D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ella usava os seus bellos rubis) o sangue das facadas que dera o papázinho! E tinham-n'a calumniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a policia perseguia o velho, mil perversidades... O

excellente Monforte, que soffre de rheumatismos articulares, achava-se tranquillamente, ricamente, tomando as aguas dos Piryneus... Fora lá que o Mello os conhecera...

- Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro.

- Sim, meu Pedro, o Mello os conhece.

Pedro d'ahi a um momento deixou o Marrare; e n'essa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miuda, andou rondando uma hora, com a imaginação toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, d'ahi a duas semanas o Alencar, entrando em S.

Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia installado na frisa da Monforte, á frente, ao lado de Maria, com uma camelia escarlate na casaca - egual ás d'um ramo pousado no rebordo de velludo.

Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha uma d'essas toilettes excessivas e theatraes que offendiam Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ella se vestia «como uma comica». Estava de seda côr de trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o collo e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnação eburnea, banhando as suas fórmas de estatua, davam-lhe o esplendor d'uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de pé com o papá Monforte - escondido como sempre no canto negro da frisa.

O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltára á sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ella conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram n'elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.

Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Elle tambem namorou-a publicamente, á antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janella d'ella, immovel e pallido d'extasi.

Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel - poemas desordenados que ia compôr para o Marrare: e ninguem lá ignorava o destino d'aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d'elle sobre o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha á porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:

- O sr. D. Pedro? Está a escrever á menina.

E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu bello e franco sorriso:

- Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever á Maria!

Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Bemfica, sobretudo o Villaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova d'aquelles amores do Pedrinho. Affonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume d'um enveloppe com sinete de lacre dourado; -

e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho á estroinice bulhenta, ao jogo, ás melancolias sem rasão em que reapparecia o negro ripanço...

Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos Açores, o chicote de feitor na Virginia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia.

Uma noite que o coronel Sequeira, á mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, «ambos muito bem e muito distingués», Affonso, depois d'um silencio, disse com um ar enfastiado:

- Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa mulher, com um pae d'esses, mesmo para amante acho má.

O Villaça suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d'ouro exclamou com espanto:

Are sens