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- Ora sirva-se d'esse fricassé, ande abbade, disse Affonso, que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim...

O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:

- Deve-se começar pelo latimsinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basesinha!

- Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrça!

Forrça! Musculo...

E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos:

- Prrimeiro musculo, musculo!...

Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo d'erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma creança n'uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negocios d'uma nação extincta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras cousas do Universo em que vive...

- Mas emfim os classicos, arriscou timidamente o abbade.

- Qual classicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessario ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste n'isto: crear a saude, a força e os seus habitos,

desenvolver exclusivamente o animal, armal'o d'uma grande superioridade physica. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...

O abbade coçava a cabeça, com o ar arripiado.

- A instrucçãosinha é necessaria, disse elle. Você não acha, Villaça? Que v. ex.ª, sr.

Affonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas emfim a instrucçãosinha...

- A instrucção para uma creança não é recitar Tityre, tu patulae recubans... É saber factos, noções, cousas uteis, cousas praticas...

Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n'um signal ao Villaça, mostrou-lhe o neto que palrava inglez com o Brown. Eram de certo feitos de força, uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor approvava, retorcendo os bigodes. E á mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros de pé e guardanapo no braço, todos, n'um silencio reverente, admiravam o menino a fallar inglez.

- Grande prenda, grande prenda, murmurou Villaça, inclinando-se para a Viscondessa.

A excellente senhora córou, atravez d'um sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucellas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque negro e lentejoulado.

Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso fez uma saude ao Villaça. Todos os copos se ergueram n'um rumor de amizade. Carlos quiz gritar Hurrah! O avô, com um gesto reprehensivo, immobilisou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicção:

- Oh avô, eu gosto do Villaça. O Villaça é nosso amigo.

- Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tão commovido que mal podia erguer o calice na mão.

O jantar findava. Fóra, o sol deixára o terrasso e a quinta verdejava na grande doçura do ar tranquillo, sob o azul ferrete. Na chaminé só restava uma cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de limão: os creados, de colletes brancos, moviam o serviço d'onde se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desapparecia sob a confusão da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada abanava-se. Padre Custodio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas.

Então Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saude.

- Viva v. s.ª, snr. Carlos de Matta-sete!

- Sr. Vôvô! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabeçinha de cabellos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa - em quanto todos sorriam, no enternecimento d'aquella cerimonia. Depois o abbade, de palito na bocca, murmurou as graças. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou tambem as mãos. E Villaça que tinha crenças religiosas não gostou de vêr Carlos, sem se importar com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do avô, fallar-lhe ao ouvido.

- Não senhor! não senhor! dizia o velho.

Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões, n'um murmurio de mimo dôce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente.

- É por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas veja lá, veja lá...

O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Villaça pelos braços, fêl-o redomoinhar, e foi cantando n'um rythmo seu:

- Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Therezinha, inha, inha, inha!

- É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa. Já tem amores, é a pequena das Silveiras... O café para o terraço, Teixeira.

O dia fóra convidava, adoravel, d'um azul suave, muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os geranios vermelhos estavam já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d'uma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flôres do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve áquelle sol timido de primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta n'uma luz fresca e loura.

Os tres homens sentaram-se á mesa do café. Defronte do terraço, o Brown, de bonet escossez posto ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava ao alto a barra do trapezio para Carlos se balouçar. Então o bom Villaça pedio para voltar as costas. Não gostava de vêr gymnasticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavallinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-n'o; sahia sempre com o estomago embrulhado...

- E parece-me imprudente, sobre o jantar...

- Qual! é só balouçar-se... Olhe para aquillo!

Mas Villaça não se moveu, com a face sobre a chavena.

O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos, e o pires cheio de café esquecido na mão.

- Olhe para aquillo Villaça, repetio Affonso. Não lhe faz mal, homem!

O bom Villaça voltou-se, com esforço. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapezio, as mãos ás cordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com os cabellos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo elle sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se á aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos.

- Não está mais na minha mão, não gosto, disse o Villaça. Acho imprudente!

Então Affonso bateu as palmas, o abbade gritou bravo, bravo. Villaça voltou-se para applaudir, mas Carlos tinha já desapparecido; o trapezio parava, em oscillações lentas; e o Brown, retomando o Times que pozera ao lado sobre o pedestal d'um busto, foi descendo para a quinta envolvido n'uma nuvem de fumo do cachimbo.

- Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da Maia, accendendo com satisfação outro charuto.

Villaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abbade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a sua bella phrase, arranjada em maxima:

- Esta educação faz athletas mas não faz christãos. Já o tenho dito..

- Já o tem dito abbade, já! exclamou Affonso alegremente. Diz-m'o todas as semanas...

Quer você saber, Villaça? O nosso Custodio matta-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...

Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião d'aquelle

velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguezia, era uma das suas dôres:

- A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.ª o diga assim com esse modo escarnica...

A cartilha. Mas já não quero fallar na cartilha... Ha outras cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.

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